“Corra!” (2017)
Corra!. Direção: Jordan Peele. País de Origem: Estados Unidos, 2017.
Alerta! Contém spoilers.
Um homem negro fala ao celular em um bairro suburbano estadunidense, perdido na confusão dos nomes que batizam as ruas. De repente, um automóvel passa por ele, faz retorno e o segue devagar. O homem percebe, desconfia da situação, intui o perigo iminente. Quando acredita-se livre do horror que estava à espreita, é capturado. Essa é a primeira cena de Corra! (Get out). No imaginário, o subúrbio é o lar dos conservadores brancos e dos libertários de fachada. A imagem é um momento de tensão e uma mostra dos símbolos, da desconstrução (que subverte os clichês-sustentáculos de vários gêneros cinematográficos) e da caracterização do racismo institucional, que se faz de invisível, que o longa-metragem de Jordan Peele percorre em seus 104 minutos.
A abertura nos remete à personagem negra descartada logo no início de um filme de terror B ou de medo para adolescentes pós-Pânico (1996) e ainda alude à vulnerabilidade de se andar sozinho, sem ter para onde correr, que é típico do gênero – no caso, em bairro consagrado pela dinâmica do capitalismo dos “bem-sucedidos”, da “gente de bem” (será o mascarado em um carro branco algum tipo de justiceiro?). No lugar da floresta e do rapaz/moça branca em território desconhecido, temos um negro, o suspeito por “excelência”. A cena seguinte apresenta Chris (Daniel Kaluuya) – fotógrafo de sucesso – e sua namorada Rose, interpretada por Allison Williams, que discutem uma viagem a casa dos pais dela. Cris interpela se os progenitores da amada sabem que ela está em um relacionamento inter-racial. A jovem responde: “O meu pai teria votado em Obama pela terceira vez se pudesse. Ele não é racista”. A sentença, misto de convicção e resposta adequada, tranquiliza Cris, no entanto, não afasta a sombra da desconfiança.
Após o momento romântico do casal protagonista, enfrentar os subúrbios da América, suas casas que esbanjam tradição e liberalismo, já traz uma primeira tensão, a primeira fagulha de um racismo naturalizado. Enquanto Rose se indigna por um policial pedir os documentos de Cris, logo após ela atropelar um cervo, o rapaz reage com diplomacia, segue a cartilha, pois conhece as consequências de se contestar a “autoridade”. Se a revolta de Rose não gera uma reação exaltada do policial, caso fosse Cris, o que sucederia?
Na casa vivem os pais de Rose, o casal Armitage – Dean e Missy – (Bradley Whitford e Catherine Keener), o irmão, Jeremy (Caleb Landry Jones), uma criada (Betty Gabriel) e um jardineiro (Marcus Henderson), ambos afro-americanos. Cris é bem-recebido. Porém, há uma alta dose de esforço para agradar ao jovem namorada da filha adorada. Uma predominância do exagero. Quando Jeremy entra em cena, suas observações sobre o vigor do corpo negro lançam o incômodo ao status de tensão.
A liberdade política, a consagração de uma harmonia racial, a felicidade que estabelece uma ordem cultivada pelo respeito às diferenças ganham contornos sinistros e se impõem como mistérios a partir do estranho comportamento dos empregados (que apresentam um olhar vazio, destituído de emoção, e um cumprimento inautêntico do dever), e da cura pela hipnose, que Missy usa como método em sua terapia. Há um enigma na residência e sua plástica harmonia vai cedendo aos poucos, revelando o que há de aterrador e cruel neste mundo em que o Outro transita entre o indesejado e o descartável.
Peele constrói sua obra fílmica de estreia usando como suportes o terror psicológico e o terror satírico, sabendo dosá-los e aplicá-los a cada momento. Quando Cris é hipnotizado, supostamente para pôr fim ao seu vício em cigarro, o horror começa a surgir nos detalhes (mas não antes de uma surreal queda em uma cova), equilibrando comentários estampados em um racismo que não se reconhece como tal e a construção de uma sensação de claustrofobia que cerca Cris por todos os lados, aumentando a angústia da personagem e a agonia do espectador.
Para a edificação do pesadelo escondido por trás de sorrisos generosos e atitudes solícitas, contribuem a fotografia, com planos abertos que trabalham o espaço, aumentando o suspense e closes que afinam o que o filme tem de perturbador, os efeitos sonoros que sinalizam o pesadelo que está por vir, a trilha sonora e um elenco nada menos que espetacular (Kaluuya e Keener, principalmente). LilRel Howery, interpretando Rod Williams, guarda e melhor amigo, é responsável pelo alívio cômico, contudo, a comédia promovida por ele, com comentários sobre brancos capturando negros para fazê-los de escravos sexuais, não destoa da ansiedade que petrifica Cris e a audiência, pois baseia-se em incertezas e desconfortos que compõem a tensão subjacente de ser minoria em territórios da classe dominante.
Corra! guarda semelhanças com a estrutura de muitos filmes de terror e suspense: De As Esposas de Stepford (1975, de Bryan Forbes) a A Chave Mestra (de 2005, com Kate Winslet) entre outros. Mas os usa para subverter clichês, expondo-os para dar uma direção inesperada a eles. Frustrar as expectativas das convenções do horror serve para desmontar o racismo existente nas relações interpessoais, em que o negro é objeto de culto, por sua cultura e sua força, mas acusado de promover separações quando suas reivindicações ecoam mais fortemente.
Corra! trata de corpos negros (de minorias) expostos como mercadoria. A sua velocidade, a sua beleza, o seu olhar artístico, que podem se diferenciar da compreensão padrão que satura ao máximo fórmulas já desgastadas, são artigos desejados, porém desde que venham sem a pele. A relação com o Outro é intermediada, ou tem valor, a partir do que ele tem para oferecer. Não há uma troca, um entendimento, mas uma prestação de serviço ou usurpação.
Se, em Quero Ser John Malkovich (1999, de Spike Jonze), outro filme carnavalizado pelo roteiro de Jordan Peele, a aspiração é depositada na vida eterna, em Corra!, a apropriação de uma qualidade, seja física ou intelectual, e a manipulação de um capital cultural ou de um atributo da genética, controlando a mente de seu agente, são o que está em jogo.
A obra inaugural de Peele é um filme de terror psicológico, no qual aparência e símbolo estão em confronto constante para revelar um subtexto social que entrega o racismo como a fratura exposta que ele ainda é. Na verdade, o quanto a aceitação que parece ignorar a existência dos conflitos varre para debaixo dos panos as discriminações e preconceitos diários, enquanto enaltece as qualidades que deseja ressaltar no Outro. Corra!: uma brincadeira cinematográfica, uma crítica social.