Débora Pedroni entrevista Leo Motta
Entrevista com Leo Motta, ex-morador de rua carioca que escreveu seu primeiro livro e teve seu lançamento na Bienal do Rio de 2019, concedida por email a Debora Pedroni.
Débora Pedroni: Peço licença aqui a meus amigos escritores, autores renomados e pessoas influentes na área de Letras e Literaturas, mas preciso falar sobre inclusão e exclusão social na prática. Há um tempo atrás, conheci uma pessoa através das redes sociais que me mostrou o quanto podemos acreditar nos nossos sonhos, e como o nosso futuro está ligado de maneira intrínseca aos nossos dons. Eis que, participando da divulgação ‘a distância do Flisgo (o primeiro Festival Literário realizado na minha cidade natal, São Gonçalo, já que moro há 8 anos na Croácia, porém vou ao Brasil anualmente por ter minhas raízes e referencias bem fincadas lá) me deparei com a história desse rapaz que será o nosso entrevistado de hoje.
Não há dúvidas de que esse assunto deva ser abordado incansavelmente, diariamente, em todos os âmbitos de nossa vida. Um dos temas de maior desafio de todos os tempos no nosso país, a inclusão social é uma bandeira que precisa ser levantada em todas as classes, em todos os níveis da sociedade contemporânea. As desigualdades pelas quais a nossa pátria vem lutando contra desde a era imperialista, passando pelo Abolicionismo e abrangendo distribuição de terras e renda inapropriadas nos fazem pensar que esse abismo criado entre nós nunca terá fim.
E com isso, venho aqui de maneira humilde e grata mostrar um pouco da trajetória de vida de Leo Motta, ex-morador de rua carioca e ex-dependente químico que vivia nas ruas do Rio de Janeiro. Foi uma troca de emails e mensagens bastante informais, e que deixo aqui pros leitores com um gostinho do sentimento que tive ao fazer esse artigo: é possível fazer o bem pelo outro, basta querer e acreditar!
Debora Pedroni: Leo, fale um pouco sobre você.
Leo Motta: Me chamo Leo Motta, tenho 38 anos, nasci e fui criado no bairro de Cordovil, na zona norte do RJ e tenho 6 filhos.
DP: Qual a sua formação profissional?
LM: Eu não concluí o Ensino Fundamental. Meus únicos empregos foram de garçom e atendente de restaurante, durante 7 anos da minha vida. No entanto, eu não permanecia mais do que 2 meses em cada lugar onde me empregavam.
DP: E por que você não conseguia seguir num emprego a longo prazo?
LM: Nesse período, quando completei 16 anos, comecei a trabalhar e, ao mesmo tempo, fui apresentado ‘as drogas. Fui pai jovem e comecei usando cocaína aos 17 anos e, por conta do vício, nenhum empregador quis me manter em seu local de trabalho. E com razão. O vício só aumentava, as pessoas ao meu redor sofriam me vendo assim, naquela situação em que não podiam me ajudar, e foi aí que decidi ir morar nas ruas.
DP: E que motivo tão drástico assim te fez sair de casa, abandonar sua família e morar embaixo de marquises?
LM: Eu tive uma overdose horrível em frente a minha mãe. Foi aí que pensei, “ Não quero causar mais dor a quem eu amo. Se for pra sofrer, vou sofrer sozinho pois ninguém merece me ver desse jeito.”
DP: Eu fico imaginando o que passava pela sua cabeça enquanto você estava ali, vivendo nas ruas, sobrevivendo a todo tipo de adversidade que te foi imposta pelas drogas.
LM: Sim, passava milhões de coisas na minha cabeça, além do espírito de sobrevivência diário (pois viver nas ruas é lutar todos os dias pra permanecer vivo), eu pensava a todo momento que seria o meu fim, que não via nenhum tipo de luz no fim daquele túnel. Mas ao mesmo tempo, havia dias e momentos em que eu sonhava em sair dali, em mudar de vida, já que me sentia muito só, muito medo e excluído. Sentia que no fundo ali não era o meu lugar, que não merecia passar por isso (nem eu e nem ninguém que vive nas ruas). Só não sabia de que forma tudo isso poderia mudar.
DP: E quais foram as suas maiores dificuldades reais do dia-a-dia vivendo nas ruas?
LM: Te digo que a rua é uma casa extremamente difícil: o sol castiga, aí vem a chuva, o frio, a fome, a sede…extinto de sobrevivência colocado ‘a prova a todo instante. As latas de lixo eram quase que um lugar onde eu encontrava meu banquete (biscoitos mofados, comida descartada há dias por restaurantes e bares), tudo se encontrava ali. Precisava matar a minha fome. Uma vez estava com tanta sede que pedi um copo com água e, quando tomei o primeiro gole, vi que tinham colocado sal. Foi humilhante ver as pessoas rindo daquela situação. Um simples copo de água. Numa outra ocasião, uma senhora cuspiu no meu rosto quando entrou numa padaria e a pediu para lhe comprar pão. Uma resposta negativa seria suficiente.
DP: Dói saber como as pessoas podem chegar a esse ponto quando se trata de “ser” humano. É inconcebível, a meu ver, que alguém possa dar um copo com água e sal, um gesto simples e que significa tanto pra quem está com sede. Mas, enfim..que bom que esses percalços não te fizeram desistir da vida. Agora, me diga a partir de que momento você sentiu de fato que sua vida poderia mudar pra melhor?
LM: Após 6 meses vivendo nas ruas e com a dependência química aumentando, eu resolvi que precisava parar, refletir e buscar alguma ajuda. Conheci uma associação ligada a Igreja Católica e apoiada pela Prefeitura do Rio. Esse espaço acolhia pessoas em situação de rua e, tentava de alguma forma, a ressocialização dos que procuravam esse abrigo. Recebi então atendimento psicológico e um acompanhamento constante dos assistentes sociais do lugar. E depois de 7 meses de tratamento, voltei as ruas como voluntário no Projeto Ruas, e voltei também para minha casa e minha família.
DP: E como surgiu a ideia do livro “ Há vida depois das marquises”?
LM: Eu tenho uma página no Facebook com mais de 26 mil seguidores, graças a essa ideia brilhante de uma amiga do projeto. E ela também me sugeriu escrever o livro e contar a minha história. Hoje, já são mais de 26 mil seguidores. Na verdade, a ideia do livro surgiu a partir da página das redes sociais, pois percebi que muitas pessoas haviam se identificado com tudo o que passei. A partir daí, comecei a pensar na maneira que faria pra escrever o livro. Fiz uma vaquinha online e 60% do valor necessário foi arrecadado. Alguns amigos e funcionários de um local onde trabalhava na época também contribuíram bastante para esse pontapé inicial. E detalhe: todo o meu livro foi escrito por mim num celular sem tampa traseira!Meu livro foi destaque em vários eventos literários, sendo o de maior destaque a Bienal do Rio nesse ano. Meu livro é uma autobiografia de 218 páginas e 21 capítulos, e nele relato como cheguei e como consegui sair da situação de rua e das drogas. Espero que minha história possa de fato servir de inspiração para outras pessoas que se encontram perdidas, sem referência na vida e excluídas da sociedade.
“Não importa o motivo ou a razão, embaixo de uma marquise há uma só companhia: a exclusão. Não se engane, não se permita.Homens e mulheres que ali estão podem mudar de vida. Esmolava, pedia e, ao mesmo tempo, sonhava.”
Há vida depois das marquises foi lançado pela Editora Autografia, com revisão de Clarice Pinheiro.
Fotos de Leo Motta na Bienal e com Maria Maximina, Clarice Pinheiro e Julia Messina (idealizadora e revisora do livro, respectivamente).
Débora Pedroni é natural do Rio de Janeiro e apaixonada por línguas e viagens. Formada em Letras pela UERJ, possui pós-graduação na área de Linguística Aplicada. Trabalhou por mais de 15 anos em diversos cursos de inglês, escolas públicas e privadas, e hoje mora na Croácia, onde ensina Português como Língua estrangeira e desenvolve conteúdo para web. Participa de coletâneas, antologias e tem artigos publicados em diversos sites, incluindo o Brasileiras pelo Mundo.