Devir-sonho, recomeçar – Por Vinicíus da Silva
No laboratório do tempo, coluna assinada por Vinícius da Silva, as coisas não são o que realmente são (ou que pensamos ser); os sonhos deixam de ser sonhos e passam a ser partes da vida. Nesta coluna, quinzenalmente, Vinícius escreverá a partir da interface entre artes visuais, filosofia e literatura, buscando realizar isto que o escritor chama de “experimentos” (ora textos ensaísticos, ora poemas longos) sobre tempo, esquecimento, futuro, e outros experimentos possíveis para o laboratório do tempo. Nesses encontros, Vinícius mais suscitará questões do que tentará respondê-las, pois é dessa forma que o pensamento atinge o seu nível ótimo de curiosidade para conhecer e acessar as coisas. No entanto, o laboratório do tempo nos desafia a esquecer de tudo, menos de quem somos ou de nossos simulacros; você aceita o desafio?
Vinícius da Silva (Rio de Janeiro, 2000) é formando em Controle Ambiental (IFRJ), artista em devir, poeta prolixo, tradutor (eng/port) no aguardo de novos contratos e, dentre todas as suas ocupações, apresenta o podcast Outro Amanhã e é autor do livro Por uma política da futuridade: ensaios sobre amor e novos amanhãs (com previsão de lançamento para o primeiro semestre de 2021, pela Editora Ape’Ku). Em seus escritos, muitos deles influenciados por bell hooks, importante teórica crítica estadunidense, Vinícius busca tensionar os limites entre a falta de esperança e as possibilidades esperançosas, sobretudo com discussões sobre futuro, a partir da análise (muitas vezes, filosóficas) de temas como ética do amor, negatividade queer, etc; bem como de trazer à luz da filosofia questões pertinentes às artes visuais e à literatura (não que haja separação possível entre essas áreas), provocando novos acontecimentos-experimentos e novas possibilidades.
Contato: contato@viniciuxdasilva.com.br
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Devir-sonho, recomeçar
Um dia antes, chequei no calendário meus compromissos, fiz algumas anotações para escrever um livro, busquei na internet alguns programas de residência artística. Nós estávamos em casa. Era um dia normal. Eu estendia roupas no varal, enquanto escutava a música que eu gosto. Subi as escadas, olhei para frente. Uma onda de lava incandescente vinha em nossa direção. Sabíamos que aquele era o momento da despedida. Não havia para onde correr, o fogo tomaria tudo novamente. Estávamos experienciando o fim do mundo.
Imagens de um sonho. Imagens de um sonho que faz parte da vida. Revelara-se a mim mesmo um desejo que se submete ao fim. O desejo do fim. Um desejo que não se submete à inconformidade, mas que quer pôr fim. Trata-se de um sonho que quer dizer algo. Um sonho que quer existir. Não que já não faça parte da vida, mas um sonho que quer ser a própria vida. Contemplo um estado de espírito no qual sonho e vida são indiscerníveis.
Eu sonhara um sonho que coloca-me a questão: “Onde eu estava quando o mundo acabou?” O tempo escorre sem ninguém ver. O mundo acabou sem anúncio e agora nos resta viver a maldição da eternidade. Ou melhor, a maldição de ser quem somos. Olho-me no espelho, vejo o fogo vindo em minha direção. Quero pôr fim em mim mesmo.
Aos doze anos, descobri em mim uma vontade de pôr fim ao mundo. A palavra fim esconde em si muitas coisas. Coisas que não posso dizer. Seria preciso cavar um buraco, cavalgar sobre as palavras, e pôr sua cabeça nele para evitar explosões. O fim carrega consigo dores e esquecimentos, mas também a própria vida. O fim carrega em si uma mancha. A essência do que não começa, mas continua, como todas as outras coisas. Ao descobrir em mim o desejo do fim, condicionado a ele estava a vontade de viver.
Na tentativa de escrever o sonho, corro o risco de suprimir a imagem. Em minha família, temos o costume de vestir algo especial em ocasiões também especiais. Desta vez, sequer pudemos nos preparar para o evento de nossas vidas. Talvez o mais memorável, pois parece não haver memória após o fim. Inevitavelmente, estamos vivendo sobre os escombros do que um dia teríamos sido face à égide da promessa de um novo tempo.
O futuro já não existe mais. A rigor, nem o mundo. Estamos vivendo sob escombros, sufocados, na ausência de uma memória que fale por nós, na presença de uma negatividade que recusa a nomeação. É preciso cavar, é preciso cavalgar. A palavra fim esconde em si muitas outras. Quando falamos de futuro, falamos de fim. O fim do presente. No entanto, o futuro já não existe mais. E nem o presente. O que há são tentativas de presentificação, de recuperar do fogo o que poderia ter sido queimado, cumprindo a ordem natural da vida.
O meu sonho mostrara-me muitas coisas. As possibilidades de imaginar um futuro esgotam-se em uma linha do tempo que não pode alcançá-lo. Seria preciso escavar o fim e buscar nele uma forma de pôr fim ao fim. Aliás, quando falamos de fim, sequer perguntamos a ele como gostaria de ser chamado. Não sabemos o seu nome, no entanto tememos a sua chegada. Como uma demonstração de nossa inútil vulnerabilidade, tememos o estranho, ao passo que desejamos nos lançar no mar de sua novidade. Como as lavas de meu sonho lançavam-se sobre mim.
Lançavam-se sem palavras, nada disseram-me. Uma imagem fora criada, logo depois reduzida à pressa da palavra, à mesquinhez da humanidade; este conceito tosco e esgotado. Quero devir meu sonho, quero tornar-me uma entidade onírica, existir somente nos vulcões do inefável. Recentemente, pintei esta mancha: a mancha no espetáculo do mundo. Olhando para a mancha, vejo a mim mesmo, confundo-me em meu sonho. Sinto que sou aquele que não se nomeia, por temor. Temos medo do que não podemos dizer, é preciso cavar outros buracos, imaginar o que não se diz.
As janelas da minha casa estavam abertas, no entanto a luz não entrava. Não abria-se espaço ao novo. Eu estava diante do fim. Não havia espaço sequer para o amor. As últimas demonstrações de afeto seriam direcionadas aos nossos animais de estimação, que sofreriam um sofrimento desnecessário. Se é para acabar, que deixem-os continuar. Nós sofremos por sermos humanos, por isso buscamos querer viver. Quando nos rendemos ao desejo do fim, acessamos o espaço do devir-minoritário. E só se devém ao estado indiscernível das coisas todas.
Na tentativa de escrever o sonho, a desordem da linguagem evidencia-se. As palavras fogem à significação. É preciso cavar, diz o sonho. Porém, trata-se de um território nunca antes vislumbrado. Nunca antes visto. Afinal, ver não é dizer. O meu sonho não esconde dizeres, esconde imagens. Se escrever esta mancha é matar a si mesmo, espero que eu já tenha aprendido a conviver na eternidade. Sonhar com este eterno e sagrado fragmento de mim mesmo é uma tentativa de tornar-me uma mancha incomensurável no grandioso espetáculo do mundo que não pode ser nomeado.
Eu sou o meu sonho e meu sonho sou eu. Meu sonho é uma mancha e estou em um devir eu-mesmo, pois a mim só me resta ser o que sou. Minoritário eu. Eu-mancha. E eu sou meu sonho. Eu sou o fim. Eu era o próprio fogo. Lancei-me em mim mesmo, no poço de meu desejo, no mar de meu esquecimento, na minha pintura manchada. Lancei-me para ser quem sou, mas esqueci-me que o fogo inevitavelmente me alcançaria.