Diário COVID-19. O Mundo Ficou Pequeno – Por Barbara Leite Matias
Barbara Leite Matias: “mulher, artista, nordestina, descendente dos povos Garius de Quitaíus (disse minha vó Albertina Maria de Jesus), CE, Brasil. Filha de Marinez, neta de Barbara e Albertina, tipo de sangue ‘o’.” Email: barbara.leitematias@gmail.com
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Diário COVID-19. O Mundo Ficou Pequeno
Prólogo: Aqui, nesse ensaio com cheiro de água sanitário, porque a classe rica brasileira sempre chega à frente nos supermercados e farmácia, suas mansões têm odor de álcool em gel e nossas pernas não acompanham essa gente. Antes de adentrar a farmácia, a moça já responde: tá faltando. Essa moça também não comprou álcool em gel, estava ocupada vendendo pra manter o pequeno negócio que não é seu.
Diluímos o vidro de água sanitária na água. Alongamos nossos braços e compartilhamos o kit sobrevivência dos próximos dias. Dedos intrigados de dedos higienizam o país.
Dezesseis de março, inicio no meu perfil virtual do Instagram (@babisbarbarou) a produção de escritos e de vídeo performance sobre o momento que estamos atravessando. Eu estou a dezesseis dias morando em Belo Horizonte-MG porque estou fazendo Doutorado em Artes da Cena na EBA- UFMG, e a aula dessa tarde é com um professor Francês, as mensagens começam a pipocar no e-mail da turma: “Professor, não acho suficiente o encontro de hoje”, “Eu não vou”, “Não posso ficar com falta”, “Alguém faz um relatório da aula”, “Não podemos colocar nossa vida em risco”…
Nesse dia, eu estava na universidade desde cedo, porque tinha ido fazer minha carteirinha pra ter acesso à biblioteca. No Ceará, meu estado, a vida andava olhando pra COVID-19 de forma mais assustada que nas terras mineiras, meus amigos e familiares diziam em coro.
– Volte pra casa.
Casa – Nunca essa palavra foi tão solicitada, nunca entendemos tanto a dimensão de ter um teto. Estamos esticando por dentro feito rede velha, disse minha vó quando viu a notícia no Jornal no início de março deste mesmo ano, quando isso tudo era um problema da China.
Na Praça da Universidade um aluno grita:
– Bolsonaro tá com coronavírus.
Uma moça responde:
– Tomará que morra.
Uma senhora, que passa na mesma hora, fala baixinho (eu estava próxima a ela, a distância ainda não era um caso pontuado):
– De que adianta ele morrer, se Mourão estará intacto, se o vice dele assumir é pior que vírus da Europa.
Sigo minha caminhada, vou pro restaurante universitário e a discussão é a mesma, depois pra aula e o assunto também segue.
Às 15 horas e 55 minutos, após alguns alunos assustados, por viajaram pelos aeroportos e rodoviárias de São Paulo, Curitiba, Porto Alegre e Salvador, chegarem àquela aula, alguém levanta a mão – estávamos falando de “Filosofia da Arte”.
– Gente, a UFMG entrará de greve dia 18 (quarta), às 17horas, tá aqui a matéria (aponta pro celular).
Todos começam, diante de uma aula de filosofia, a questionar, pois não entendiam quais estratégias a administração havia cogitado pro vírus não entrar no prédio naquela segunda, terça e quarta até as 17 horas.
– Aula finalizada.
Disse o professor de olhos azuis, aparentemente um senhor de cinquenta e poucos anos, talvez beirando o grupo de risco.
No ônibus, a discussão segue.
– Bolsonaro fará outro teste do covid-19.
Alguém espirra.
– As blusas ganham outro formato no corpo, algumas pessoas sobe-as para cobrir nariz e boca.
Alguém não cobre a boca, não importa o vírus continuará a falar.
– Bolsonaro pode estar com covid-19, sabia?
Olhou pra mim, respondi de longe com os olhos. Retorno o olhar pra baixo.
Hoje, 24 de março de dois mil e vinte, às 16:29, ainda não foi exposto o teste da figura citada acima.
Eu, Barbara Leite Matias, vinte seis anos, natural de Lavras da Mangabeira, Ceará, estou produzido alguns “vômitos de dentro pra fora” sobre esse confinamento, a ficção de repente se coletivizou no mundo, parece cena de filme, estamos entendendo e com medo.
O presidente do Brasil ainda não entendeu nem como coloca uma máscara cirúrgica de elástico na sua própria face.
O medo dorme comigo, ontem (dia 23 de março) cheguei de viagem na cidade de Crato, CE, passei por três aeroportos, uma viagem que se daria em menos de cinco horas, durou trinta e duas horas, viajei com a mochila e o medo, acariciei seus cabelos, não dormimos. Aeroportos são vermes engravatados.
Daqui a quatorze dias saberei se fui ou não infectada. Já será seis de abril. Em vinte seis de abril, farei vinte sete anos. Espero estar bem de saúde pro meu aniversário. Estou isolada, mas tenho quintal e comida na geladeira. Minha cachorra não me trata estranho, lavei todas as coisas que carreguei nesse trajeto, inclusive minha identidade.
Movimento primeiro
Desgosto que cospe de dentro pra fora
Continua viva, pulsante
Caroço de muitas
Nascendo de dentro pra fora
Sem chuva
Só sangria.
A solidão não veio morar comigo. Eu sou ela.
Movimento segundo
Retorno a casa, olho as paredes e descubro detalhes parado há tempos.
Corro dentro de mim como um vírus com fome.
Olho pela janela, aceno pra vizinha.
Não há sorriso no mundo inteiro.
Minha mãe me chama no vídeo, tomamos vitamina C juntas. Já é dezembro.
Movimento terceiro
1. “Só sobra pra mãe”
2. “Eu só penso na mãe”
Pra toda conversa minha mãe inicia com uma e responde com a outra. Frase de mesma resolução. Esses dias elas me veem a cabeça o tempo inteiro. Talvez estejamos sendo essa mãe em alguma instância, mãe de si em prol do outro.
Tenho me parido devagar, sem sangria, são tempos de conter nossos líquidos ao externo, me pari sozinha e em silêncio. Semana passada me batizei de Antônia, antes de ontem Ariel, livre, sem gênero fixo, conversei comigo de madrugada umas verdades engolida em mim. De mim.
Agora a pouco me fiz em Paula. Olhando o azul do mar que por acaso caí – por destino da empresa de aeronave azul tive que dormir em Recife, PE, estou num hotel de frente praia de Boa Viagem. Saber comer um doce e não poder arrotar, é essa a sensação!
Por enquanto, a gente enfrenta de outras formas. Disse ela. Sábia Paula.
Retorno a mim.
Tá certo, quem sou pra não escutar as tantas aqui dentro. É só por um tempo.
Espero todo dia o sol nascer. Eu penso em tanta coisa olhando pra ele ou ela, o sol me disse que é ela, a sol.
São tantas pessoas nesse tempo, sem tempo de ser mãe de si.
O mundo nunca foi tão pequeno.
Minha tia continua na casa dos patrões, água sanitária diluída na água, novidade, ela sempre fez isso. Ela matou um corona com pano de chão ontem, depois, olhou pra família classe média de cu perdido.
-Tá aqui, água e água sanitária, rodo e tecido, mistura perfeita como meu salário.
Foi ser mãe de si.
O mundo tá ficando pequeno e pode ficar mais.
Hoje, contei quantas tias podem ser mãe de si, menos que os dedos de uma só mão.
E as mães da China engolindo suas lágrimas pra não contagiar os filhos de uma emoção gorda em vírus, não se diz mais eu te amo de perto. – Nunca amar com olhos foi tão importante, disse minha mãe pra mãe da China que só viu na televisão. Elas ficaram íntima, não ofereceu café porque dinheiro é sujo e tem que lavar as mãos duas vezes a mais.
Eu entendi agora porque sempre disseram “dinheiro é sujo”, passa na mão de todo mundo, do bom e do ruim. Menos dos pobres. Mão de pobre não acaricia dinheiro.
Esse corona é pra gente ser mãe de si, pensando no outro.
Todo mundo é suspeito até que não dê uma “tossinha” de leve.
Movimento quarto
Se, por acaso, sair na rua, pense três vezes antes desse ato. Assim, ainda assim saindo, só em último caso perceba o dragão que cospe fogo de olho a olho, alguns metros de distância pra evitar o incêndio. Não deixe de espiar. Guarde o instante, volte pra casa lave os sapatos, os alimentos, as mãos.
Nunca tive tanta intimidade com unhas, falanges, veias que têm olhos, que tão vivos querendo ficar em retorno a mim.
Guardar um olhar na quarentena é como sonhar que uma alma ofereceu uma botija.
Depois da quarentena, encontrar esse olhar é viajar com o ouro da botija desenterrada.
Alma penada vaga nas ruas da solidão cheia de gente.
Movimento Quinto
Aquele homem é um corpo engravatado-morto.
Aquele corpo amarelado, peste, pele, desgosto nosso de ter que escutá-lo dizendo que nos matem vivos. Logo ele, corpo morto-vivo.
Aquele corpo não tem mãe nem festa.
Movimento sexto
Sonhei que o presidente morreu engasgado com suco de limão feito por minha vó.
Sorriamos com a tragédia simbólica.
Lavávamos as mãos a cada peça costurada pra vestir aquele corpo pro enterro.
Ele morto, nós éramos tantas.
Queimávamos ele e todo vírus foi decapitado, amém.
Minha vó, agora, presidenta.
Eu sonhei, enquanto podia, com a morte dos vírus.
Movimento sétimo
Eu dizia, eu não preciso de você, aliás, não preciso de ninguém.
Mesmo fazendo teatro, eu, bem no fundo, me faço só.
Eu menti.
Minha cor preferida nunca foi preto.
Eu emancipei um eu, que não sou eu.
Percebi agora, feito um grito no ouvido.
Escuto meus gritos.
O silêncio da rua aumenta como os gritos daqui de dentro.
Movimento oitavo
De segundo a segundo eu ligo a tv
Sei detalhadamente – milímetro a milímetro de notícia, elas pesam toneladas.
Eu só penso nos jornalistas, alguém ligou pra eles.
Façam sopa pra eles, antes lave as mãos.
Eu só queria que todo jornalista e médico tivessem mães pra sempre.
Ser jornalista e médico não é a mesma coisa
Mas um dirige e o outro informa o ritmo. É como a música, existe pro mundo acontecer.
Por favor, inventem uma mãe pro povo da notícia e da saúde.
(Imagem de capa: Jamal C. [março de 2020]).