Divanize Carbonieri retrata o mundo das mulheres – Por Marilia Kubota
Na coluna quizenal “Outras faces”, Marilia Kubota publica resenhas jornalísticas sobre obras de autoras e autores independentes e da grande literatura, destacando escritos de mulheres não-brancas e de autoras e autores da diversidade étnica e sexual. Desta vez, o livro resenhado é Passagem estreita (Carlini & Caniato Editorial, 2019) de Divanize Carbonieri.
Marilia Kubota é poeta e jornalista, nascida no Paraná. Autora dos livros de poesia Diário da vertigem (Patuá, 2015), micropolis (Lumme, 2014) e Esperando as Bárbaras (Blanche, 2012) e organizadora das antologias Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle Franco (Quintal, 2018), Blasfêmeas: Mulheres de palavra (Casa Verde, 2016) e Retratos japoneses no Brasil (Annablume, 2010). É Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Em 2020, lança seu primeiro livro de crônicas, Eu também sou brasileira, pela Editora Lavra.
A imagem destacada na coluna é de autoria de Carlos Dala Stella.
***
Divanize Carbonieri retrata o mundo das mulheres
Mulheres. Estas são as protagonistas dos 19 contos de “Passagem estreita” (Carlini Caniato Editorial, 2019), de Divanize Carbonieri, indicado para concorrer como finalista no Prêmio Jabuti, em 2020. A autora acompanha a trajetória de deficientes mentais, mães solteiras, ex-escravizadas, guerrilheiras, interioranas, escritoras, professoras e sem-vozes que buscam brechas para entrar num sistema desigual.
As narrativas se assemelham a uma algaravia, escritas num bloco só — um fôlego só ? — explorando a complexidade de recursos literários da modernidade. Alternância de vozes e foco narrativo, representação de vários dialetos (da fala de analfabetas até a de super-letradas) e paródia de linguagens do discurso literário e de roteiros de cinema.
Para permitir que o leitor entre no universo das personagens, a narração adota o ponto de vista delas, mesmo que entre em conflito, como acontece em “Fia”. Quando a protagonista é incapaz de interpretar o mundo, a narração a defende, lembrando a personagem Macabéa, de A hora de estrela, de Clarice Lispector.
Outra personagem que emerge do subterrâneo é a do conto “Brilhante”. Em poucas linhas, a autora consegue sintetizar as agruras de uma sociedade escravocrata, em que crianças de uma classe social tratam outra, de classe inferior, como brinquedo. A narração vai revelar que subjetividade da menina pobre não é destituída pela objetificação das meninas ricas. E é por conta da consciência de um mundo de privilégios e discriminações que a protagonista do conto “Vocabulário” se esforça para achar uma saída:
Uma BREHCA. É SÓ o que eu preciso. Uma brecha ETSREITA pela qual consiga passar. Uma pequena fissura naquele SITSEMA construído para dar passagem ampla APENAS para poucos. Era por essa abertura ínfima que DESLIZARIA para outra vida, mais plena de PTOENCILAIDDAES. (página 43)
Muitas vezes o caminho não será solidário e a ascensão construirá um sujeito injusto. A autora não poupa denúncias sobre os abusos e a violência destinados a destruir o corpo e inteligência femininos. Neste ambiente de desumanização crescente, a vingança pode se incorporar num espírito animal, como se vê no conto “Pantera”, em que a brutalidade é confrontada com a natureza selvagem. O olhar crítico não romantiza os miseráveis. Quando puderem, empregarão a lei do mais forte, deixando os vulneráveis para trás, (“Estratagema”). As histórias derradeiras, “Adormecida” e “Lenda”, trazem mulheres fortes que subvertem estereótipos de outras narrativas, como contos de tradição oral e cinema.
Esta primeira coletânea de contos de Divanize Carbonieri permite antever uma escritora destinada a atingir um nível refinado de linguagem, ao demonstrar talento em explorar recursos literários e criar climas e personagens realistas, com toques de humor negro.
Divanize Carbonieri é autora de outros quatro livros de poesia: Entraves (2017), que ganhou o Prêmio Mato Grosso de Literatura, Grande depósito de bugigangas (2018), selecionado pelo Edital de Fomento à Cutura de Cuiabá/2017, A ossatura do rinoceronte (2020) e Furagem (2020). Passagem estreita foi selecionada pelo Edital Fundo 2019 de Apoio e Estímulo à Cultura em Cuiabá.