“Divinas” (2016)
Divinas. Direção: Houda Benyamina. País de Origem: França, 2016.
Divinas é a primeira realização em longa-metragem da franco-marroquina Houda Benyamina, que lhe valeu a Caméra d’Or em Cannes 2016, prêmio concedido para o melhor filme de estreante, e os Césares de Melhor Primeiro Filme, Atriz Coadjuvante (Déborah Lukumuena) e Melhor Atriz Promissora (Oulaya Amamra). As láureas acumuladas asseguram visibilidade a uma obra difícil, potente e que flerta com a tragédia em várias de suas passagens. As tensões sociais e raciais na França pulsam em um tempo que o tema imigração rende votos, seja na defesa pelo acolhimento e reconhecimento do Outro, seja na negação de abrigo respaldada no discurso da preservação do modo de vida e dos valores nacionais.
Duas jovens amigas, Dounia (a impressionante Oulaya Amamra) e Maimouna (Déborah Lukumuena) vivem nos subúrbios de Paris, em um cotidiano de alcoolismo materno – Dounia –, rigidez religiosa – Maimouna –, instituições negligentes ou ultrapassadas e desejos de consumo interditos. À margem do sistema, sobra aspirar a glória que pode ser realizada com a aquisição de bens materiais.
A insatisfação que move Dounia é perceptível e clarividente nas primeiras cenas de Divinas. A forma como observa a traficante Rebeca (Jisca Kalvanda) já dá a dimensão do que quer e do que será capaz de fazer para fugir daquela condição de miserabilidade que a massacra desde a infância. No gesto de ruptura com a ordem social, ambição e gana de viver se encontram, descortinando a omissão estatal, a ausência filial e a sedução do capital, que transforma necessidade em vislumbre de status quo.
No ambiente hostil em que Dounia está inserida, o dinheiro surge como ponte de salvação e a amizade como porto seguro. Lado a lado, em um universo em que as instituições se precarizam cada vez mais – escola, família, poder público etc –, o slogan “Ficar rico ou morrer tentando” passa a ser uma alternativa viável e a amizade um modo de partilha dos anseios e das pequenas felicidades. Mas optar pela criminalidade resulta em riqueza ligeira, desastres e quebras de vínculos. O mal-estar existencial de Dounia é transmitido com fúria e sensibilidade por Oulaya Amamra, que é irmã da diretora e uma escolha mais que perfeita, pela sua intensidade e olhar de quem compreende a armadilha em que está e se colocou.
As manifestações nos subúrbios de Paris, como as ocorrências/ sublevações de 2005, são como um espectro a acompanhar o filme de Houda Benyamina. Algo que ela viu de perto, já que é desses cantos esquecidos de Paris que se origina. Logo, Divinas é uma produção engajada, sintonizada com o grito dos excluídos, com o conjunto amotinador de vozes que sabem que igualdade de direitos e acesso ao poder são fundamentais para uma mudança social.
Pode-se dizer que nesse tópico está a força-motriz de Divinas. Porém, o filme não se reduz a explorar o aspecto de uma realidade de obstáculos e de expectativas anuladas por administrações governamentais e seus interesses mesquinhos. Há nele inversões instigantes promovidas por Benyamina. Para além do protagonismo feminino e da ligação afetiva de duas jovens que se apoiam em uma cidade de “portas fechadas”, a relação entre Dounia e seu interesse romântico é mediada pelo corpo. Então, Djigui (Kevin Mischel), segurança de supermercado e bailarino, surge como oportunidade de uma nova vida, de uma fuga. Corpos em choque, provocações e possibilidades dividem a jovem, mas criam um apego, quase desesperançado, de que uma reviravolta pode ser desenhada (até a cena “clássica” do amado aguardando na plataforma do metrô). A relação entre rapaz e moça na luta desesperada para dar um salto do submundo para uma vida melhor tem na arte, na dança, uma metáfora original. O encontro do casal, geralmente, ocorre no teatro, e a dança coloca os corpos para se comunicarem: movimento, atração e estranhamento. Dois seres que se agarram ao que sabem e querem ser. Mas Djigui nunca assume o primeiro plano. O seu papel é determinado. É aquele que quer salvar a protagonista. Quantas vezes atrizes não ocuparam um espaço secundário em produções em que um herói ou anti-herói precisava lidar com as “escolhas ruins” que fez na vida?
No entanto, é o vínculo Dounia-Maimouna que comanda Divinas. Desde os vídeos que mostram duas adolescentes se divertindo nas noites da periferia de Paris até as consequências dos atos que praticaram para alcançar o “El Dorado” da vida longe da desigualdade e violência. Dos belos momentos em que fantasia e realidade se imbricam (para o espectador não esquecer que a arte tem sempre um pé no real), como no passeio de Ferrari inventado por Dounia, no qual elas circulam por ruas imaginárias, esbanjando luxo, mas a vista é sempre de um bairro com prédios decadentes e o lixo urbano denunciando a negligência estatal. Na cena, o excelente trabalho de design de som aumenta a sensação de angústia por um desejo que as mal-traçadas linhas da vida transformará em sonhos desfeitos. No outro extremo, a violência empurra-as para crise a respeito dos caminhos que restam e para a tragédia, já que a criminalidade carrega consigo algo de uma inevitabilidade presente, que cerca e cerceia esses mesmos caminhos que se tornam a cada passo mais movediços.
A montagem de Divinas auxilia sobremaneira a crônica de uma catástrofe anunciada que acompanha a estreia de Benyamina. O trabalho de câmera cru perscruta e esmiúça esse cenário de desalento e afã por algo que supere o viver para sobreviver. Mas é instigante acompanhar as sequências em que a brutalidade de um evento e um espetáculo de dança dialogam, alternando-se, até revelando certa agressividade presente em ambas.
Quando a precaridade é a única coisa que se vê no horizonte, ver no dinheiro a única solução é algo para ser censurado sem analisar seus atenuantes? Eis a obsessão de Dounia, que foge do abismo autodestrutivo que sua mãe se encontra, da morte iminente de uma vida na delinquência e de todas as interdições que uma elite política condenou seus concidadãos menos favorecidos pela “sorte”.
Por mais que Houda Benyamina nos traga essa angústia social de uma juventude que conhece bem as privações a qual é atirada sem chance muitas vezes de recursos para protestar, Divinas, ao retratar a história da amizade inseparável de duas garotas estranguladas pela pobreza e construir uma Dounia forte, absoluta em assumir as rédeas de sua vida, torna-se uma visão visceral da marginalização promovida pelos podres poderes (que abandonam e depois fazem do pobre suspeito. Não se deve esquecer os motivos das manifestações que tomam os subúrbios de Paris desde os primeiros anos de 2000) e da luta furiosa de jovens mulheres para expressar sua revolta e sair das condições que engendraram para elas (sem permissão).