Dois contos de André Balbo
André Balbo (São Paulo, 1991) é editor da Lavoura. Publicou os livros de contos Eu queria que este livro tivesse orelhas (Oito e meio, 2018) e Estórias autênticas (Patuá, 2017). Autor convidado da Flist e da Flipoços, é um dos curadores da Casa Philos na Flip 2018. É também editor, revisor e parecerista freelancer de textos de prosa. E-mail para contato: balbo008@gmail.com
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A gente não vê quando o vento se acaba
E Deus disse: “Faça-se o bolo.” E fez-se o bolo. E Deus viu que era bom.
Katherine Mansfield, “Psicologia”
Até os quatro anos, nunca se fez notada ou incomodou ninguém, a não ser pela perfeita calma e silêncio, talentos que azedam a balda dos curiosos e tagarelas. Miúda, os olhos grandes, sempre sentadinha onde se achasse, fazia vácuos e falava em hiatos. O Pai, agricultor de avós chineses, lidava com o mato e seus bichos. A Mãe, católica fervorosa, foi vista sem o terço na mão apenas uma vez, na revinda serpenteante de um banho de mar. Pai e Mãe, e filha. Por volta dos cinco anos, a menina passou a ser percebida: foi quando começou a engolir nuvens.
O Pai e a Mãe não aprovaram desde o início. Começa com nuvem, depois vira céu, depois estrelas, depois vai querer engolir a terra toda, prejudicando o pasto das vacas e a colheita do milho, falava o Pai. A Mãe dizia que o comportamento da menina não era sadio, foi que comprou boneca de pano e brinquedo do intervalo da novela para distraí-la. Mas não era o que a filha queria — queria engolir nuvens. O Pai tratou de tomar as rédeas do problema e recolheu um vira-lata, o que muito embraveceu a Mãe, que em vão disse que sobraria para ela limpar o cocô e alimentar o animal. Mais brava ainda ficou porque a menina não brincava com ele — queria engolir nuvens.
Mudaram-se para a cidade de brusquidão, mal se deslindando o Pai dos negócios e das premências da terra, coisa de gente que na exasperação lança os dados sem preencher o pule, mete-se em debuxo e se engana a botar fé em coisa serôdia como mudança de ares, pois culpado era o ar do interior, convenceu-se de maneira suspeita o Pai, e na cidade o êxtase dos carros e das indústrias fariam da atmosfera esquecimento para a filha. Mas bastou pisar a primeira calçada urbana e a menina logo sentiu que o ar estava com cheiro de lembrança. Dali a três manhãs, o primeiro senão: convocados o Pai e a Mãe pela diretora da pré-escola para versar sobre a reclamação da professora Adriana — não florescia o experimento em que os alunos plantavam mudas no jardim, porque a menina sem intervalo engolia as nuvens de ali em cima, estorvando qualquer morrinha, qualquer patameira, restando o sucesso da atividade à ventura de um sereno fora do horário de aula. O comportamento rendeu-lhe sentenças severas na escola e em casa, e dali em diante nunca houve um dia sequer sem que ela amargasse chegadelas e advertências.
Desagrado e frustração tão agudamente riscavam o Pai e a Mãe que foi com apatia que testemunharam a filha salvar a vida de mais de duzentas pessoas de um voo que, durante um zigue-zague em uma zona de instabilidade, por descuido ou castigo, invadiu um núcleo de tempestade. O piloto só foi capaz de compensar a nave depois da surpreendente intervenção da menina, que engoliu todas as cúmulos-nimbos daquela zona; quando o avião aterrissou, uma batelada de câmeras e repórteres direcionava objetivas e oculares para ela e seus pais. Uma santa!, exclamou uma senhora, aos prantos. Alheios à euforia, o Pai e a Mãe decidiram nunca mais viajar de avião.
Foi coisa de dez anos depois, durante uma aula de biologia, ela fixando os olhos vastos na janela do laboratório, quando foi cutucada no ombro por Rafaela, sua melhor amiga, que contou a ela que Bia tinha contado que Marina tinha ouvido Pedro falar aos meninos da sala que a achava bonita, mas que com ela não ficaria por conta daquela coisa de comer nuvem. E foi esse o motivo único para que ela renunciasse ao seu hábito mais persistente: Pedro, o repositório de aflições adolescentes. No mesmo dia, ela parou de engolir nuvens. E daí o viço recôndito da genética: qual o Pai, ela fez por resolver-se de brusquidão. Dali a alguns meses, a um dia do início das férias escolares, enquanto o Pai e a Mãe esgrimiam por bagatela à mesa de almoço, a garota rumorejou que estava namorando Pedro. A notícia provocou dupla reação: o término da rixa entre os pais e o princípio de uma nova, ora unificando desafetos. Como assim namorando?, gritou o Pai, enquanto a Mãe apertava o terço e deprecava ao teto. Gravoso o fato de que, ao sobressalto dos pais, a garota tenha pedido seu assentimento para dormir na casa do namorado no dia seguinte. Você é menor de idade, insistiu, conheço bem o que se agita em cabeça de moleque de dezesseis anos. Sempre muito serena, ela, porém, achou aquilo um absurdo; não esboçava fazer nada com Pedro, só assistiriam a um filme. O Pai deveria agradecer, ela pensou, não estava incomodando ninguém, havia parado de engolir nuvens, o que é que tanto se queria dela? Não por menos a garota o culpou por sua recaída, pois se não tivesse ele a constrangido tanto naquela tarde, não haveria motivo para se trancar no quarto e chorar durante todo o sábado. E assim não haveria motivo para durante o pranto recluso verificar a previsão do tempo para domingo em Buri, sua cidade natal, e pegar um ônibus escondida até lá. Quando voltou, no final da noite seguinte, a garota não fez por paliar nada. O Pai e a Mãe discerniram o inconfundível vestígio de névoa no canto de sua boca e ralharam durante horas. Bastante irônico que, no dia seguinte, tenham encafuado-se em silêncio, no tempo em que um oficial de justiça bateu à porta noticiando que a garota fora acusada por um fazendeiro buriense de maleficar sua plantação. Vista escondida por um aviador de lente violeta, cabelo esgrouviado, barba inacabada, camisa branca para fora do jeans escuro cheio de rasgos: compunha um tipo diferente o tal servidor que entregou um papel cheio de jargões esdrúxulos, por ele traduzidos, sem muita vontade, para linguagem de em dia-de-semana, após uma gagueira questionadora da Mãe. E como tartamudos viveram os três durante os cinco meses seguintes, até o derradeiro momento em que, os vivos olhos da garota fechados num choro baixinho, foi julgada culpada pela delinquência praticada contra o respeitável Sr. Ruronildo de Barros. Entrementes, evidente que Pedro dissolveu o namoro assim que descobriu que ela havia engolido trinta nuvens na Lagoa do Sino — uma dissolução mediata: a notícia chegou a ela por meio de Rafaela, que ouviu de Bia, que ouviu de Marina, que ouviu dos meninos da sala.
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Em sua cela, pensou a jovem que, com muito acerto, alguém disse que o tempo voa. Silenciosa de em si, com o voar do tempo aprendeu a legar à escrita as palavras nunca ditas na infância e na adolescência. Não porque escrever se fazia para ela um entretenimento ou alguma sorte de desenfado, mas antes porque o não dito dentro de si em algum momento precisou desbordar, qual a abelha que acumulou demasiado mel —alguém já disse que alguém que fala pouco disse que a palavra mais precisa só fica pronta depois de muito silêncio. E ela respirara mais de duas décadas de silêncio. Era sua hora de dizer. A poeta do pavilhão dois, repetia sua colega de cela. Natural e sensato que se pergunte se, nessa estância, ela parara de engolir nuvens. E natural e sensato que a resposta seja é claro que não; ao contrário, passou a engoli-las cada vez em maior soma, sobretudo durante as caminhadas pelo pátio a céu aberto — ali, ainda bem, a lei era outra, e ninguém frustrava seus modos. E, afinal, quem iria preferir a chuva? A chuva é um luxo dos libertos; aos cativos, a espera por um feixe de luz, ela foi escrever em um de seus cadernos. E com palavras precisas ela esperou. E de muito esperar veio o feixe, infiltrando-se ao ranger do ferrolho na sua partida: dia de voltar para casa. Dia de reencontrar a Mãe, que, não havia dúvida, antes de qualquer afago lançaria a idêntica e tão repetida pergunta nas infrequentes visitas à prisão: Ainda está engolindo nuvens? E também certo é que, como sempre, ela responderia que não.
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Pegou a surpreender Marina o convite da amiga, recém-egressa, para se encontrarem no parque, depois de quase dez anos. Não foram amigas tão próximas na adolescência, mas como sua preocupação principal era saber de Pedro, no decurso de sua reclusão a jovem obtivera que muito mais simples do que ouvir de Rafaela o que ouvira de Bia, que ouvira de Marina, seria ouvir em linha reta da última. Na amena inquietude de escutar as novas, chegou duas horas mais cedo para esperar Marina. Quase não a reconheceu, muito alta, bonita e ereta, trazendo na mão um guarda-chuva retraído. Fez de esticar a mão, ao que a amiga a abraçou com força. Na envergonhada conversação entre duas desconhecidas pelo tempo, a convidada estendeu uma notícia inebriante: Pedro e Rafaela iriam se casar. Não se lembra dela?, perguntou Marina. É claro que ela se lembrava. Decomposta entre surpresa e algum abatimento, ela percebeu que sua decisão de ouvir as novidades de Marina fora não apenas o melhor desenlace lógico, como também o melhor desenlace psicológico, bastava imaginar o pesado desconforto se tivesse sobre Rafaela recaído o ônus de contar o vertiginoso fato do qual era coautora. Dormindo acordada em torno dessa inteligência, a jovem não aplicou o ouvido à próxima oração de Marina, que estalou os dedos, chamando-lhe a atenção, e, usando quase as mesmas palavras, repetiu que elas haviam dado muita sorte com o sol, porque a previsão dava certeza de chuva a manhã inteira. Esfregando os grandes olhos de sempre, ela suspirou um murmúrio, e, espaçando um sorriso acanhado, respondeu:
— Verdade, Má, muita sorte.
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O um café
Com a concha das mãos, faz o que sempre fez no mar, e com altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes, bons.
Clarice Lispector, “As águas do mundo”
Senhora, faz literalmente dez minutos que pedi um café. Temporalmente, você quer dizer. Bela sacada, mas, realmente, queria meu café. É o que estou tentando explicar, menina, faz temporalmente dez minutos que você pediu seu café, mas aqui não trabalhamos com essa grandeza. Que grandeza, o tempo? Na verdade, trabalhamos com o tempo, mas não com esse de se contar em minutos, horas, trabalhamos com outro tipo de tempo. Que tipo de tempo? O Tempo, com t maiúsculo. Que seja, senhora, mas, maiúsculo ou minúsculo, não quero gastar mais qualquer tempo. Menina, se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu conheço, não falaria em gastá-lo como se ele fosse uma coisa, ele é alguém. O tempo é alguém… Sim, e se chama Carlota. Carlota… Isso, Carlota, a dona da cafeteria. Entendi, então a Carlota usa um relógio quebrado, é isso? Ih, não, menina, relógio quebrado acerta a hora duas vezes ao dia, mas já te disse que aqui não trabalhamos com isso de hora, nem de dia. Sei, então ela marca o tempo num cronômetro viciado… Cronômetro, ave, aqui essa palavra é tabu, menina. Você está de gozação, aparentemente. Aparentemente, mas não realmente. E sinceramente eu estou começando a perder a paciência, senhora. Ave, por que essa coisa de perder a paciência? Porque nada disso faz sentido, caramba, faz anos que venho aqui e nunca, nunca ninguém veio com esse papo. Faz anos, você disse, ou seja, veja aí que você continua a pressupor um tempo com o qual aqui não trabalhamos, menina. Senhora, por favor, do que você está falando? Estou falando que quando você diz que alguma coisa faz anos, você acha que é possível medir as experiências da vida como quem estica uma corda entre duas árvores. Porque é assim que a vida funciona, senhora: a gente nasce, cresce e morre. Será que a vida é tão simples assim? Ai, senhora, olha, não é à toa que meus pais, avós e bisavós um dia foram bebês, muito antes de eu ter nascido, sabe. Aí está o obstáculo, menina. Que obstáculo? Essa é a história que contam desde que a gente nasce, mas ela não é a História, com h maiúsculo. Senhora, assim, vou tentar ser direta: eu não tenho mais tempo, mesmo, seja o da Carlota ou o do resto da humanidade. É claro que tem, menina: há quanto, digamos, tempo acha que estamos conversando? Tempo suficiente para eu me atrasar para o estágio. Estágio é problema, menina… Senhora, eu quero o meu café, agora. Mas você está com o seu café, agora, ou quer ainda outro, além do que está tomando?
É uma cafeteria no centro da cidade. Vazia. Os tons fortes do marrom ambiente de sempre então mais puxados para o pastel. As mesas e cadeiras, à exceção de um conjunto, substituídas por centenas de sacas; o aroma clorogênico fundindo-se à atmosfera enquanto os finos lábios de Joyce abordam a porcelana, o vapor tórrido umedecendo a ponta de seu nariz. Ela e o café — é um café todo seu. Joyce traga um gole; é o melhor café que já provou em sua vida. Um café que é o melhor café que se prova a qualquer momento. No sigilo de sua contemplação papilar, apenas o gorgolejo da sorvedura aflita, ela sente o líquido quente irrigar-lhe a garganta para repousar com ímpeto em seu estômago. Mas não é suficiente. O encontro físico não é o bastante, não elucida seus mistérios, os dela e os do café. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: o empenho de duas compreensões. Não há outras pessoas ali a tomar seus cafés, o que faria de sua ação simples jogo leviano de beber. O café é pequeno e quente, mas causa na gente efeitos tantos que de sua pequenez se faz sua grandeza, e de nossa suscetibilidade, nossa exiguidade. Pois é em sua pequenez que borbulham os impulsos necessários à euforia e à atenção, tão benquistas por nossa exiguidade. O café é vasto e conhece a si mesmo. E por isso têm mérito as palavras de Joyce (James, não ela): não se conhecer é um ato de coragem. O horizonte das substâncias se dissolve no preto do café dentro da xícara, e Joyce, cheia de coragem, se levanta: sobe na cadeira, tirando um mapa do âmbito prenhe de sacas, e começa a se despir — o terninho cinza forrado com recortes manga longa, a camisa branca de algodão, o sutiã de renda, a calça social, a calcinha e, finalmente, o scarpin salto fino, ah, que alívio! Da cadeira, salta à mesa: mergulha os dois pés na xícara fumegante e agacha-se no líquido lentamente até manter apenas a cabeça para fora. Ela está eufórica e alerta, mas fecha os olhos e submerge. O mundo é um café e ela nada livremente pela bebida, deslocando braços e pernas, perfazendo círculos que acompanham a curvatura da porcelana. A cada movimento, sua coragem aumenta. E mais. E mais. E mais. E seu movimento é uma espiral e é ela mesma e é o café e é o mundo. O mundo café. O café O. O um café. O um café só seu.
Visto de fora, o café dentro da xícara sobre a mesa da cafeteria oscila, hesita, dança — escapa-lhe uma gota. Essa gota de atenção, essa gota de euforia é o café e é ela. Essa gota que é o mundo desliza pela porcelana, tingindo-a com um rastro só seu, para, ao fim, morrer num pires branco, expandindo-se instantaneamente à razão de uma pequena mancha. Essa mancha reflete uma jovem e seu reflexo é um convite. E o guardanapo é um convidado; o guardanapo que Joyce tem à mão e usa para sugar a mancha no pires e limpar os lábios depois do último gole. Conferindo as horas no celular, com o olhar ela procura a garçonete e acena a mímica dos devedores. Só o café mesmo, menina? Sim, vou pagar no cartão, por favor. Esse fica por conta da casa. Magina, eu faço questão. Vai, menina, larga disso, só a maquininha do caixa está funcionando, olha o tamanho da fila pra só um café. Ah, então eu pago em dinheiro, mas só tenho uma nota de cinquenta, tudo bem? Ave, menina, aqui não trabalhamos com essa grandeza. Dinheiro?! Não, com nota de cinquenta, né, quer foder meu troco? Joyce ri.