Dois contos de Caio Augusto Leite
Caio Augusto Leite nasceu em São Paulo em 1993. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Tem dois livros publicados Samba no escuro (2013, Scortecci) e A repetição dos pães (2017, Editora 7Letras). Além do livro de poemas Silêncio de frutas sem verão, no prelo.
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Isso não é uma história de amor
O vinho repousava na taça, vermelhíssimo. Do Porto. Seus álcoois evaporando-se no ar, inebriados olhavam-se, tão parecidos em cultura, linguagem e crença. Um tanto, porém, desconhecidos – ainda. E por isso mesmo também iludidos. Os garçons passavam, driblando mesas. Como naus desviam de acidentes e acabam levando o pedido pro lugar errado. Nem se davam conta: chegaram ali aparentemente por acaso. Entabularam uma conversa amena, interessante, pois a primeira de novidades ainda por percorrer. Não como mapas já traçados e paisagens viciadas, o logro do amor é que logo deixa de excitar o corpo e o diário do tempo atenua as vibrações em movimentos mecânicos de ir e vir, ir e vir, sem graça. Há muita ambição em todo enlace.
Mas não agora.
Teóricos buscam nas mais vastas contraposições de culturas um modo de demonstrar a contrariedade do humano. Mas o quê. Se dois só apenas bastam. Se um sujeito diante prontamente de outro é todo um mundo a ser devastado. Já se colonizavam europeus antes de aqui chegarem, um modo de treino, assim já carregavam debaixo da carne todos os gestos do fogo capazes de subjugar o outro. O mais que outro: o inimigo. Como nós: americanos. Mas não sem luta. Também os de aqui sabiam bem lidar com o adverso. Todo encontro implica a derrocada de um império.
As armas estão sempre postas. Canhões e rifles, garrafas e pratos. Como papéis editando tratados à revelia dos interessados. Há embate no resvalar mais mínimo. Não sabemos do amor sem guerras. Helena raptada, por qual motivo fosse, acabou por destruir Troia e exilar Ulisses. Vale o holocausto de um povo inteiro em troca de algumas noites de prazer? Cassandra, prevejo, diria que não.
A primeira visão nos coloca em uma falsa marcha. Nos apegamos demais ao primeiro sentido. A primeira impressão é a que fica? A primeira impressão é a que nos engana mais, depois ficamos mais atentos. Os caminhos mudam de repente. Às vezes se repetem, se não tomamos o devido cuidado.
Atenção.
Há um ditado que diz: ame o pecador, odeie o seu pecado, que difere de outro parecido: diga o pecado, mas não diga o pecador. O primeiro pressupõe que conheçamos ator e ato, o segundo apenas a ação. Em que medida isso altera alguma coisa? Há quem irá amar você apesar de. E outros que, apesar de, irão te amar. Há diferença? Deve haver. Nenhuma semelhança é exata, mesmo espelhos mentem. Tudo faz curva e retorna ao que antes seguia. Distrações acontecem. Quando pressentimos que algo nosso, que já não dávamos tanto valor, está sendo ameaçado, o que fazemos? Fincamos bandeiras e retomamos o controle. O que é meu é meu. O Mediterrâneo era romano. O Atlântico foi lusitano, quiçá madrileno – londrinos o quiseram.
Voltemos.
Depois de passadas as primeiras impressões. Depois de evolar-se todo o conteúdo etílico das taças e de o sorvete derreter lentamente separando-se do leite a gordura pela louça clara, daí ergue-se a mão e paga-se a conta. Um diz que paga, o outro insiste. Depois de falsas falas modestas, acertam de dividir: são modernos como duas coroas ibéricas já dividiam o planeta a partir de sei lá quantas léguas a partir de Cabo Verde. Muito modernos.
Agradecem ao maître. Pegam as chaves do carro e se lançam ao desconhecido. Tudo é mar. E tudo é metal. Tudo é metáfora. Quem sabe signo. Indignos na noite, cristãos – porém – velejam.
Antes de chegarem ao motel já terão invadido o Novo Mundo. Nas escadas já terão mudado o nome de tudo e dizimado tantas etnias quanto possível. Com a chave na mão vão escravizando povos africanos e explorando a terra. Enquanto se beijam e se despem dissipam florestas e esgotam riquezas naturais. Já nus estão independentes, por guerra ou golpe. Deitam na cama e urbanizam-se. No sexo oral vendem-se ao capital estrangeiro. No cunete já estamos perto de uma ditadura. Sem que tivesse sido chamado vem um terceiro que propõe algo diferente, mas muito bom. Atam os dois à cama e lhes venda os olhos. Vai ser divertido, garante emprestando a altas taxas de juros e importando matéria-prima: agora já se passaram dois grandes embates e o pau se ergue aríete potente. Quando o órgão penetra sem lubrificante na pele – no pelo – aí já estamos com os pulsos magoados por conta das algemas gritando e gostando apesar de dor e sangue. Quando chegasse a hora de trocar – a nossa vez – ele irá deitar de costas no travesseiro macio, acender um cigarro e dizer: desculpa, meu bem, mas agora eu já gozei.
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Pássaros
Via passarinhos onde não tinha. Estiveram? Estariam? Não sabia. Os pássaros, pelo que pensava, não têm presente. Era sem motivo que enxergava. Uma miragem sem deserto, pois. Acima da cabeça do amigo, ali, um pássaro de trezentos anos: de futuro ou de passado – trezentos anos. O tempo recua ou avança? Dúvidas que a física da escola não respondia. Amanhã era sempre depois, ontem sempre antes. Assim ensinaram. E os pássaros, como explicá-los? Os pássaros surgiam como surgem ideias – subitamente. Depois voavam e não sabia se estavam indo embora ou chegando. Sempre duvidava dos pássaros atuais: estão mesmo ali sobre aquela árvore e cantando? Tinha medo de tocar e ferir os pobres animaizinhos, não tinham culpa da arbitrariedade do espaço contra o tempo. O mistério estava no espaço? Um espaço abriga muitas idades, eras possíveis, caminhos que talvez nem chegassem aqui, pássaros que nunca estiveram e nunca estarão: pássaros incompossíveis. Mas se ele podia ver… mas ver não é saber. Ver é um modo de não entender, disso sabia, pois lera em algum filósofo. Pensar um pássaro é muito mais seguro: não no pensamento sobre o pássaro, mas no pensamento de que alguém, ao menos, está pensando um pássaro. Ver é, pois, ilusão? Então tudo era ilusão, pois nem o pássaro hoje, nem o pássaro nunca existiam de fato. As mãos buscavam certezas, mas tato também é sentido, e sentido é soma de desilusões. O que se pode fazer é sistematizar e dizer: o que tocamos, o que vemos, o que ouvimos – isso tudo existe. Não individualmente, mas como um tratado. Se muitos vemos: então há. Os pássaros que só ele podia ver não existiam. Existia ele para os pássaros fictícios? Ou em algum outro plano alguém também podia ver através da pleura e enxergá-lo andando por aí – enquanto se esquecia de pássaros – e cumpria seus deveres de homem? Uma vez teve uma experiência esquisita: talvez provando a tese de que se ele podia ver o invisível que os outros pássaros eram, os pássaros podiam ver – de seu turno – o invisível que ele era para as aves ahistóricas. O que viu foi: um pássaro – de que espécie, não sabia bem, sabiá, chutaria, pela penugem alaranjada – pousado no peitoril da janela. Numa primeira olhada, pensou que fosse um pássaro real, ali pousado, querendo algo para bicar, mas olhando melhor (e toda vez que olhava melhor conseguia desvendar a falsidade do olhar, pois detectava falhas na verossimilhança da reprodução) percebeu que não: não estava ali jamais ainda o pássaro. Também ele não estava ali para o bicho. Mas aproximando-se, o olhar atento, assustou-se quando o olhar do animalzinho seguiu seus movimentos. Então ele podia me ver? Pensou assustado. Você me vê? Perguntou, esquecendo-se de que os pássaros não podem responder. Que miséria isso de estar diante de algo que – estando ali – não pode devolver o pensamento no mesmo código. Mais perto ficava do sabiá – sim, agora ontem sabia, era um sabiá. Teve uma ideia. E se imitasse o canto do pássaro. Imitar é uma forma de entrar em contato. Imitando, reconfortamos aquele que nos vê imitando. E relembrando o que já se sabia, conhecemos. O certo era isso: cantar como um passarinho. Ficou de frente, agora podia ver as falhas nas asas e no bico: a mensagem estava se apagando – também para o passarinho os seus braços e sobrancelhas estariam sumindo. Puxando o ar, enchendo os pulmões, a boca em posição propícia: assoviou. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Enquanto desanimava, o pássaro respondeu na mesma medida, no mesmo ritmo, o trilo. Rútilo nos olhos. Repetiu o trinado. O trinado repetiu: a ave. Encantando-se mutuamente sereias, o homem se aproximava da janela. Quando? Há setenta anos adiante um pássaro voa de seu predador, esquivamente presa. Remotamente hoje um homem cai da janela de seu quarto. Dias depois, quando despertei, já não via passarinhos.
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