Dois contos de Felipe Nascimento
Felipe Nascimento: “nasci em Santos, mas me mudei pequeno para Praia Grande. Graduando em licenciatura em Letras – Unisanta, acredito numa literatura que seja ao mesmo tempo crítica e inclusiva. Lancei em março meu primeiro livro de poemas chamado A alegria é surda, mas comecei na prosa, mesmo que me sinta mais livre na poesia. Quem sabe um dia lançarei um livro em prosa”.
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Livre
Ele estava solto dentro de casa. Só. O barulho da televisão o fazia pensar que tinha gente atrás daquela parede e que o único som do mundo não era o seu comendo salgadinhos. Dia quente, dia imprestável, a vontade do nada. Era noite, mas o bafo era tanto que preferiu ficar na sala, fingindo que assistia alguma coisa, pois de vez em quando dava uma olhada no celular. Pensou como seria engraçado se todos soubessem que todo seu sofrimento estaria predestinado.
Ele pensou em ouvir uma música. Não, iria lhe trazer lembranças (que lembranças? Ele não sabia, mas tudo já havia passado em branco). Como o cheiro de esgoto lhe lembrava chuva. O encanamento dali nunca fora bom, o quintal enchia um pouco às vezes.
O barulho de chuva lhe lembrava fritura também. Mundo pequeno e repetitivo, parece que tudo se copia.
A única conversa possível para ele era o silêncio ou o uso dos monossílabos. Esperava do mundo o que esperava das séries. Já pensou se tudo fosse televisionado? Seria tudo exagerado, passaria do limite da ética. Audiência é lucro e precisamos de emoção na nossa vida.
Era uma dor. Que nascia. Não sabia como nascia, mas via como uma torrente, um rio. Não tivera vontade de chorar, poderia rir se quisesse. Mas era essa dor silenciosa que era mais forte de tudo.
Não tinha arrependimentos, porque não tinha memória. Tinha o dia que repetia, os cafés das manhãs, as namoradas que de quem ignorara as vontades. Era um homem sem qualidades. Sua vontade era básica e procurava resolvê-la.
Havia sempre essa distância entre o desejo e o desejado. Infelizmente era quase impossível.
Enquanto isso, lá fora havia lama, corpos no chão. Podridão que permearia suas vontades.
Tocou o telefone. Ele atendeu:
“Você tem um sonho?”, ele respondeu com um não. Completamente neutro.
“Mas você poderia ter. A casa própria, ou algo do tipo. Você só precisa pegar nosso crédito.”
Sonhos com cheiro de fruta podre, perto dos corpos. Não há vontade, o concreto esconde o ferro. Há muitos corpos embaixo de cada prédio, muitas discussões em torno dos apartamentos.
Sonhos se realizarão pela força da grana. As vontades permanecerão em cubos de concreto.
Mas ele desligou o telefone, só lhe interessava era comer salgadinhos.
*
Bolas de gude
Um dia, encontrei meu corpo morto no sótão lá de casa. Fedia, dava o tom da repulsa. Parecia estar lá há muito tempo, mas não me incomodei. Não me importo com a morte morando ao meu lado, às vezes até a abraço e vivemos como uma relação casual sem intensidade. Às vezes, até esqueço que ela existe.
Mas o corpo definitivamente ainda não estava velho, na verdade, parecia até mais uma versão mais jovem de mim. Não tenho dramas com isso, não guardo sonhos ou ilusão, para mim isso parece acontecer bem frequentemente. Quem não tem o próprio corpo guardado? Uma olhada e já basta para perceber os detalhes. Detalhes que são indiferentes para outras pessoas. Tipo uma pinta meio feia ou até mesmo uma falta de talento numa atividade cotidiana.
Há um desencontro entre o mundo e eu, um desentendimento que não vem do silêncio e sim da palavra. Parece haver um limbo entre as pessoas, um não-lugar onde as palavras vão parar.
Que espécie de segredo as pessoas guardam? Que corpos guardamos no sótão? Representam uma esperança falsa? Uma vontade de nos mantermos vivos?
Não sinto transformação nenhuma, isso não é um romance e nem um conto, é mais uma espécie de confissão. Deixarei o corpo lá, sozinho. Não é a minha parte ruim, sou eu todo. Talvez até esses corpos se multiplicarão, não me importa, a morte é sempre uma só. Estamos unidos por isso, uma das duas experiências iguais a que todos estão condenados: nascimento e morte.
Afrodite nasceu para que tenhamos um simulacro de conexão. Mas amar o outro é amar a si mesmo, projeção entranhada do outro.
Sei que agora encontrei meu corpo, porque Eu me reconheceria. Estou de volta a Ítaca, transfigurado em mendigo, mas o meu interior é o mesmo. Falta-me vontade de que me reconheçam, agora as pessoas parecem bolas de gude.