Dois contos de Jefferson Dias
Jefferson Dias (nascido em Monte Sião – MG; vive e trabalha em Ribeirão Preto – SP). Formou-se em Letras pela Universidade Federal de São Carlos. Poeta e prosador, publicou o livro de poemas Último festim (editora Multifoco, 2013); em 2014 teve o poema “Dédalo” publicado na segunda edição da revista “euOnça” (editora Medita). Em 2015 veio a lume seu segundo livro de poesia, Silenciosa maneira, que integra a Coleção Galo Branco da editora Medita (mediante o edital nº 34/2014 do Programa de Ação Cultural “Concurso de apoio a projetos de publicação de livros – coleção de obras inéditas no estado de São Paulo”). Escreveu, ademais, Qualquer lugar (poesia, inédito), Sonata do Diabo (romance, inédito) e trabalha na tradução do poema Briggflatts de Basil Bunting.
***
Devolvamos a paz ao coração medroso
O papagaio repetia: eu não sou piedoso. Eu não sou piedoso. Emporcalhava a lavanderia, empoleirado no varal. Grunhia, gritava feito loba. Eu entrava, saía, miolos espocando, lâmina por detrás dos olhos, a penumbra doía fundo, o arrebol empanado entontecendo, refletindo no chão abrasado a tua última agonia, eu babava, queria rosnar, queria ranger os dentes, mas só parava ante a parede prática e impudica. Ia de cá para lá, de lá para cá, mais trágico que Mickey mouse.
Não sei se foi ontem ou se foi hoje, talvez tenha sido na semana passada – de todo modo o papagaio já jaz silente, informe, mancha seca no carpete –, eu te liguei, quanto tempo fazia? Eu durmo no colchão ainda. O apartamento cheio da tua presença movediça. Contei aquele sonho, lembra? Eram as minhas mãos, minhas, crua carne, pólvora carmesim. O papagaio lia Dostoievski em voz alta, infeliz, bicho dos infernos, eu te liguei, sempre caindo de sono e exausto de fadiga, fui fumar um cigarro na lavanderia, abri a porta, venci com dificuldade o monturo de bosta, o diabo fugira? Enchi o pulmão de fumaça. Divisava as luzes líquidas dos automóveis, quase corpos celestes, pensava em te ligar, aí as asas voejaram sobre minha cabeça, e se abateram sobre meu peito como cascos de ferro, monstro das profundezas, bracejei, xinguei, ele se desviou, subiu e arremeteu de novo contra mim, visava meus olhos, maldição, acertei tapona, estatelei o pterodátilo, peguei da vassoura e esperei – animal estúpido. Veio de novo, verde satânico, senti-me Laio justiçado, ninguém senão eu poderia prostrar o psitacídeo! Rebati-o como no baseball, depois o espezinhei, e ele repetia: eu não sou piedoso, eu não sou piedoso. Ainda o ouço. O bico duro do meio do lamaçal de merda e sangue grita: eu não sou piedoso.
Eu te liguei, tua voz não veio, e eu te contei o sonho: eu via de longe, mas as mãos eram minhas, a frialdade do metal tiritava na carne, minha carne carmesim, a luz magenta macerava os tímpanos, o zumbido nojento explodia as córneas, minha mãe já ajoelhava, meu pai me olhava por detrás do embrião das lágrimas, tua irmã praguejava, as meninas corriam ainda, teu tio dormitava pré-histórico na cadeira de praia, as mãos carmins, carne sim, minha, minhas falanges febris, tua mãe repetia com voz de fuligem: eu te avisei, eu te avisei, teu pai, recém alfabetizado, repetia: falácia, falácia, e a frialdade fálica tartamudeava na falangeta, meu deus, meu deus, minha avó choramingava, a voz pastosa, que nojo, eu vomitava, jarros de jorros, o cano palpitava, eu hesitava, tua voz não vinha, o metal me queimava o tato, eu era o fantasma dos meus instintos e lancei no ar o primeiro raio: eu era deus. A menininha tombou, acudiram. Teu primo correu e eu disparei. Maldito. Caiu feito um saco de cocô. Minha avó chorava a plenos pulmões – acertei-a no peito, um, dois, três, quatro, e ela não se calava. O quinto tiro foi na fronte. Tua mão não vinha, tua mãe caiu, teu pai, eu não sou piedoso, eu nunca poderei ser piedoso, meus olhos retiniam e tingiam-se de verde, minha mãe me olhou feito a virgem de vidro, meu lobo frontal detonou, fogo de artifício em preto e branco, tua voz não vinha, porra, os corpos iam despencando, meteóricos, lodaçal de sangue e vísceras – o som da carne conciliava o inconciliável. Braços, pernas, raios, tripas, sol, sangue sobre terra. Quando houve o império do silêncio, ouvi tua voz e me aproximei da matéria coagulada: teus olhos verdes gritavam em despedida.
Eu me sento na área limpa onde ficava o sofá só – em derredor, os dentes da memória rangem, monturo de fuligem – e descubro que sou um anjo, como na música, lembra? Os passos ecoam no paço de sujidade, cada vez mais atabalhoados, dissonância veloz e hesitante, afásica e irisada, eu quero gritar e só babo. Eu te liguei. Queria só dizer que eu não sei se alimentei o papagaio. No trabalho vai tudo bem. Talvez eu seja promovido. Mas o apartamento se deforma como uma cara de puta extática, como uma veia infusa em heroína, sei lá. Eu ainda ando. Eu ando. O papagaio canta: ela já não é a minha pequena, que pena. Por vezes diz: deus se suicidou com uma navalha espanhola. Gosto do bicho. Tem senso de humor. Quanto tempo faz? Eu te liguei, percebes? Viste? Mas tua voz não vinha. Como vai a tua mãe, o teu pai?
*
Domingo (ou entre o eco e o oco)
E se depois do último ponto final disserem que me falta carne? Que sou impossível? O que está em jogo? A vida? A superação da vida! Se assim for, a verossimilhança não é senão o mais escarnecível dos vezos. Todavia se o que perseguem é a vida, eis o homem:
*
Domingo. Acorda-se sempre muito tarde, suando profusamente. Como é que eu vou transpor esse dia maldito? – é a primeira coisa que vem à cabeça. Não sei se aguento. Talvez eu possa permanecer aqui, pequenino e dobrado como um feijão, debaixo do lençol amarfanhado, casulo inexoravelmente rompido (inexoravelmente; “você fala muito difícil, Laerte”), até desaparecer completamente – uma ideia e tanto, eu concluo virando-me para o outro lado. Há, contudo, o raio mortal que se intromete pela nesga. O gosto de revólver quente e xarope de lágrimas. O bulício das pessoas que como um fantasma atravessa a porta. Com o dorso da mão se limpa a baba, o corpo se contorce involuntariamente: é o veneno. O veneno das horas.
O decúbito ventral não refreia o arquejo; antes, amplifica-o. Esbofa-se de medo. Tanto medo. O desespero dos anos vem salgado como uma onda, não há vida que não seja vivida à toa – viro-me novamente cismando. Não há nunca ninguém, há só essa lâmina solar indiferente cortando, corroendo a carne. O teto movediço. É preciso levantar. Como é que se sobrevive a um domingo? – eu murmuro antes de vomitar.
Durante a semana toda anseio pelo fim dela. Então chega o domingo, pesado como uma lesma, e só o que eu quero é ser autômato segunda a sábado doze treze horas por dia levando as pessoas de um lugar a outro sem tempo sem tempo para pensar. Um filme sem graça na TV de madrugada até a cabeça de pedra despencar no poço do sono. As mulheres ruidosas durante o jantar. Muitos colegas não voltam para casa; mal comem, mal dormem. Fazem vigília incessante. Um chamado no meio da madrugada; precisam da grana, dizem; três filhos etc.; se eu quisesse, trabalharia mais. Gosto de pensar que tenho escolha. Volto a casa. Durmo em casa. As mulheres me torram o saco, penso que deveria ter ficado de plantão; falo para os outros que tenho liberdade. Horário flexível. Engraçado: horário flexível. Só não sei por que diabos eu insisto no domingo. Sempre penso que deveria ter ficado de plantão, arranjava assim um dinheiro e me mandava.
Não sou de muita conversa. Talvez isso soe um tanto eufemístico (vivem dizendo: que eu falo muito difícil). A verdade é que falo muito pouco. Passo a maior parte do tempo na rua. Gosto mesmo do contato mudo corpo-a-corpo entre anônimos. Não tenho paciência para conhecer as pessoas; no fim é tudo tão frustrante; gosto mais de imaginar. Os colegas me acham estranho; eu sei; percebe-se já pelo tom de deboche quando me cumprimentam, “tudo bem, doutor?”, a ênfase no “doutor”. Se há um momento ocioso no dia e nos encontramos no espaço comunal, olham-me de esguelha. Não tomo parte nas atividades pornográficas. Acho a nudez monótona. Uma vez me passaram uma revista e eu recusei. “Laerte, você não gosta da coisa? É bicha?”, eu nada respondi, apenas esbocei riso chocho por detrás do livro. Porque eu prefiro ler. Lord Byron, sabe? A patroa da minha mãe ia jogar fora, dá para acreditar? Queria voltar para a escola. E sair daqui. Só sair daqui. Isso sim. Fugir.
Não posso escapar de mim mesmo.
*
O cavalo decapitado corisco risca o espaço cálido sobre ele o jóquei apocalíptico suado sorriso tão meigo contra a apoteose de sucata passa raspando não se atrasa quase se enrasca quase não vira fumaça desvia vai pelo vão e desfaz-se no funil do panorama pasmo. Vai mitológico o ginete agitado quase não para a motocicleta embriagada. Sobe lépido o donzel na anca metálica diz a direção e a parelha parte escapa espoca. Palreiam imparáveis parecem grandes amigos trincham a cortina de petróleo o tropel estrondoso mal e mal se ouvem e se entendem tanto! O escudeiro na garupa ignora os apupos grita achega a boca ao ouvido do outro e cinge-o com o gesto enérgico aponta um atalho e se deixa jazer aconchegado sem querer. Só o cheiro cálido. “Será que chove?” Uma febre fina enfuna o tórax do timoneiro e ele responde ressabiado “acho que não” a coxa rija do outro serpeia sereia e ele não sabe se foge meio enfurecido meio lisonjeado. A cavalgadura ecoa empaca inopinada as carnes se encaixam sem frincha. Busto e costas calmas um bicho uno quente teso um ósculo dentro cangote odoroso fora do tempo.
Laerte estático – extático – percebe o outro parado ao lado; balbucia então, cobra um valor, não sabe quanto, muito barato, tartamudeia, pergunta nome nem vê, não sabe o que faz. Despe o elmo, olha no olho, a cidade derrete. “Meu irmão, qual o seu nome?”, ele vozeia – ou o funâmbulo telepata falido apenas pensa? É só um menino, Laerte percebe. São dois meninos só. Tão perdidos. Ele se acerca de Laerte, estende a mão, dá o dinheiro; Laerte se empertiga, sorri envaidecido, enraivecido, descoberto. O só menino se adianta e o beija na boca.
Mas vejam, ali, se não é o Carlão, bem o Carlão; poderia ser qualquer um, mas não, o Carlão; será que viu o beijo? Dos colegas de Laerte, ele era o mais boçal, o mais bronco, o mais bestial, o mais homem. Carlão passa moroso montado na motocicleta capenga, quase cai ao ver o Laerte, viado, bicha do caralho, ele tinha certeza, sempre teve, moleque esquisito, vai ver só o que é bom para tosse.
*
Um corpo, tão bonito, o que é que tem dentro? O corpo é o homem?
Quando Laerte deu as caras, Carlão já tinha contado aos outros: bichinha desvairada, curte encoxada, só leva homem. Nem o deixaram entrar, meteram-lhe as garras, vergaram-lhe os braços, cuspiram-lhe a cara. E socaram, socaram o estômago, as costelas, o nariz. Laerte – alento de sangue e agulha. Laerte – queria dizer, mas não sabia o quê. E porrada, mais porrada. Na cabeça, nos olhos, nos bagos. Nos bagos. Laerte – estrela de merda e dor. Tanta dor. Não se aguentou. Eram cinco, dez, uma dúzia. Mil mãos de Tifão. E seus pés infatigáveis. Laerte não se aguentou. E riram-se, como se riram! “Segura esse cu, arrombado do caralho”, e se riram com estrépito, com gosto, com ódio. Jogaram-no na calçada. E chutaram, chutaram tudo que havia para chutar. Quem era o Laerte agora? Havia ainda? Laerte era só uma negrura infinita? Laerte não era. Só o que havia era a calçada entulhada de massa cárnea – e um nome mais oco que nunca. E pisotearam, pisotearam como se pisoteia um espelho. Sangueira só. Os olhos, tão bonitos, rebentaram como jabuticabas sob os pés de Carlão. “Esse tipo de safadeza não pode na rua; na rua não pode”, disse ele, arvorado em herói; despiu depois a camisa e cobriu o corpo estirado na calçada, mortalha para o Laerte, que o quinhão funesto o agarrou, o da morte dolorosa, que os peixes comeram-no em terra firme; que ninguém se indigne, porque sem pano ele não jazeu; de todo modo, nem pai nem esposa o poderiam chorar ou amortalhar.
Laerte, tão bonito, será que seu corpo encerra sonho? O homem é o nome? O que houve entre o eco e o oco?