Dois contos de Luana Madrepérola
Luana Lima de Sousa escolheu como pseudônimo Luana Madrepérola. Nasceu em Rondonópolis, Mato Grosso. Filha da jornalista Coracy Lima. Graduada em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e mestre em Estudos de Linguagem pela mesma universidade. Trabalhou como colunista para o Correio Várzea-Grandense, com a coluna Lado Yin na qual escrevia sobre esoterismo. Hoje reside no Reino Unido. Apaixonada por fantasia e arte.
***
BATOM
Ele me olhou com seus olhos curiosos, como se me visse pela primeira vez ou como se eu fosse uma obra de arte excêntrica… Sei lá… Eu o olhei com tédio, já conhecia bem aquele terreno. Ele pediu para se sentar à minha mesa, onde eu estava concentrada na minha leitura, disse que queria conversar e fez questão de observar o quanto eu estava diferente.
Alguns meses antes eu teria me arrepiado diante daquele encontro, pois eu havia fugido dele por muito tempo. Talvez ele esperasse que eu me sentisse acuada, amedrontada e indefesa; mas eu estava ali, tão firme e segura que ele não tinha como me ameaçar. Eu estava totalmente desintoxicada do passado e era aquela que ele sempre temeu e odiou.
Quando me olhou nos olhos e pôde ver minha alma ele se assustou e perdeu a cor da face. Eu havia me tornado seu pior pesadelo. Eu era aquela garota de cabelo colorido, que usava batom e ouvia jazz; talvez isso ele tenha notado de imediato, mas quando olhou nos meus olhos ele viu que eu era capaz de andar tranquilamente pelas ruas, sem medo do mundo e eu havia mudado tanto e de tantas formas que eu já não conseguia me encaixar nele.
Ele olhou para a marca de batom na minha xícara de café, vermelho como ele sempre odiou e a partir daquele momento ele jamais ousaria me pedir para tirá-lo. Só um beijo tiraria o batom dos meus lábios e não seria o dele.
*
INVOCAÇÃO
A Joe Sales, amigo e poeta.
Quando eu queria encontrá-lo eu precisava esperar o relógio marcar meia-noite. Às sextas-feiras era sempre mais fácil. Mas ele não aparecia sempre que eu o chamava, era preciso também que ele tivesse vontade de aparecer, por isso nem sempre minha invoação era bem sucedida. Havia um espelho de mão, que eu tinha herdado da minha avó e que sempre ficava no fundo do meu baú e o usava quando precisava. Aliás, fora ela quem me apresentara a esse importante amigo. Quando a meia-noite se aproximava eu apagava todas as luzes da casa e segurava firmemente o espelho com as duas mãos e declamava os versos que o trariam até mim. Caso ele aceitasse sua imagem se formava no espelho. A princípio era assustadora e eu cerrava bem os olhos para cumprimentá-lo e quando eu os abria ele estava sentado ao meu lado e sua imagem era gentil e atraente. Na maioria das vezes eu o invocava apenas para ter o prazer de sua presença.
Quando eu queria algo além da sua aparição nós precisavamos firmar um acordo, eu entregava o que ele queria e então meu desejo era concedido. Às vezes me vinham os surtos de lucidez e eu desistia dessa invocação tentando me convencer de que ele não existia, que não era real. Ele era uma espécie de fantasma que me fazia sentir… Não sei dizer ao certo, mas eu me sentia confortável e protegida. Ele exercia um efeito mágico sobre mim. Eu não me sentia viva quando ele estava por perto e de alguma forma enigmático isso parecia esplêndido, porém algumas vezes eu parecia estar mais viva do que o de costume e me sentia plenamente no mundo. Minha transgressão era sair dos limites do esquilíbrio e da normalidade e cortar as cordas que me ligam ao divino titereiro, tomar as rédias da minha própria vida.
Quando os primeiros raios de luz surgiam no céu pela manhã ele se dissipava como fumaça no ar, só então eu ia dormir. Quando eu acordava eu me sentia mais leve, segura. Nada subistitui o prazer de ser dona do próprio destino. Mas precisava guardar esse segredo. Quanto mais secreto for o encanto maior e mais poderoso ele se torna. Eu sabia que o meu amor por ele não podia ser compreendido por mais puro e intenso que fosse. Eu estava no sentido contrário aos que estavam ao meu redor, mas ninguém jamais imaginaria. Eu caminhava pelas ruas como se nada pudesse me aflingir, eu jamais tive medo porque eu sabia que ele sempre estaria ao meu lado, e em meu coração jamais houve qualquer culpa. Viver na linha paralela sempre me agradou mais.