Dois contos de Marcia Romero Marçal
Marcia Romero Marçal é graduada em Ciências Sociais, mestre e doutora em Letras – Literatura Espanhola Contemporânea. Professora do Curso de Letras – Português/Espanhol e do PPGEL da UFMT. Tem 49 anos.
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TIRO AO ALVO
Apareceu lá no quintal dos fundos, tá machucada, acho que na pata, o chão todo ensanguentado. Como ela foi parar lá? Como se machucou assim? Não sei. Não anda direito, mas tá viva. Tem que guardar os gatos e os cachorros.
Seu Antônio disse que o vizinho da casa 7 resolveu acabar com elas atirando bala de chumbo. Tiro ao alvo? Mas elas vêm morrer aqui em casa, né. Ele não fica com o bicho sofrendo na frente dele, nem joga fora a mortalha. Acha que é um jogo de criança.
No primeiro dia no condomínio, seu Antônio, o zelador, conta que odeia gato, sempre odiou. Quando criança, escalpelava, tacava fogo. O pai um dia deu uma surra nele por causa da maldade. Fiquei com mais raiva ainda dos gatos. Mas se quiser, quando for viajar, tomo conta dos gatos e dos cachorros da senhora. Entro, dou comida, troco a água. Eles não fogem não. Obrigada, seu Antônio. Tem uma menina que vem limpar a casa, ela já tá acostumada com os bichos, os bichos com ela. Vai cuidar deles pra mim. Mas se precisar… Não vou esquecer, chamo sim.
E as eleições, seu Antônio? Ah, pelo menos o coisa ruim tá preso. Meu pai sempre dizia que ele tinha parte com o belzebu. Deus me livre, quero distância. Que demônio que nada, seu Antônio. Ele é igual a qualquer ser humano, tem qualidades e defeitos. Não é perfeito não, mas não é por acaso que tem muito nordestino que gosta dele, tirou muita gente da pobreza. Mas, e os ladrões? Cresceu o número de ladrões, ele só fez aumentar. Ele mesmo roubou tanto que tá rico de só ver. Bom, seu Antônio, vou entrando, cuidar da vida. Muita coisa pra fazer.
Vou tocar ela para o jardim da frente, assim ela se recupera tranquila, sem sofrer ameaça dos gatos ou dos cachorros. A gente fecha a porta da frente e não deixa ninguém passar. Tá.
No dia seguinte, saiu cedo, abriu, fechou rapidamente a porta. Nenhum bicho fora. Passou pelo portão, avistou a pomba deitada, a trilha vermelha marcada nas lajotas da garagem. Pelo menos a pomba morreu em paz. Morreria em paz depois das eleições?
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TIA
Chegava maltrapilha, suja, com veste surrada. Levava sacolas de pano, forradas com jornais. Metia-se no quartinho dos fundos (ali suspirava, profundo). Contava histórias de cidades distantes, desterros e riquezas, lobisomem, santos, ciganos, canções. Trazia colares, pulseiras, brincos, raízes de transações imateriais, comércio de rezas, adivinhanças, cartomancia. Ninguém podia tanto desassemelhar. Ria de tudo, contudo, no seu desmundo. Deixava o gás ligado, tomava o café. Minha mãe a escondia. Meu pai se irritava. Uma visitante invisível. Enchia a casa de prosa, gaitada, aromas, fantasia. Lia as linhas da mão. “Aquele moço moreno, que mora do outro lado do bairro, gosta muito de você.” “Ai tia, eu quero o outro loiro que mora na direção oposta.” “Esse mesmo de quem eu falava…” Dormia cedo, acordava tarde. “Tia fica mais, por favor.” “Não menina, preciso ir, tão me esperando.” Afagos, promessas de regressar…
Voltava pra rua, seu lar. Louca liberdade, andarilha, pedinte, indigente.
“Tia fica, vou sentir saudades.”
“Foi como um passarinho, dormindo.”
Rosana Moraes
Muito bons.Qualidade e criatividade .Estão de parabéns