Dois contos de Maya Falks
Maya Falks nasceu Márcia no dia mais frio de 1982. Aos 3 anos começou a ditar as primeiras histórias para a mãe. Aos 7, esboçou seu primeiro romance inspirada em Mônica e Cebolinha, aos 10, o primeiro romance policial, A Vingança, aos 11, o primeiro poema em homenagem ao filme Entrevista com o Vampiro. Aos 14 reuniu sua primeira antologia poética. Nenhuma dessas obras foi publicada. Depois de muito se dedicar aos versos e narrativas curtas, aos 24 ganhou seu primeiro concurso e escreveu Depois de Tudo, romance que seria publicado 8 anos depois. Atualmente, Maya é publicitária, jornalista e autora dos livros publicados Depois de Tudo, Versos e Outras Insanidades, Histórias de Minha Morte e Poemas para Ler no Front. Tem ainda inéditos um livro de contos, um livro-reportagem sobre o poeta Gonçalves Dias e um romance em andamento.
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Lembranças de papel de pão
Se eu tivesse que escrever sobre minhas memórias, escolheria uma caneta tinteiro e um papel de pão. Uma mesa de madeira maciça daquele tipo que não se encontra mais e uma chaleira de ferro no fogão à lenha não cairia mal como cenário de uma história que nem tem tanto a dizer, mas muito a sentir.
Me vejo de pé sobre a baixa colina observando o céu tempestuoso se aproximando de mim com a mesma velocidade que os meninos pés-de-vento corriam ao redor das meninas na esperança que nossos vestidos subissem e eles pudessem ver nossas calçolas de renda feitas pelas mãos habilidosas de nossas avós. Nesses tempos de menina tudo aqui parecia tão gigante enquanto hoje vejo ao longe a chaminé na estância vizinha sem dificuldade nenhuma sobre o salto alto e o tamanho de mulher feita.
Naqueles tempos de remota infância, fazíamos fogueira no quintal e queimávamos pinhão na chapa naqueles dias que o minuano nos gelava os corpos franzinos pelo excesso de correria nos dias de verão. Não tinha tempo ruim praquelas crianças cuja uma delas era eu, de tempos tão remotos que hoje, com rugas no rosto e costas cansadas, parecem lembranças de outra vida.
Por essas terras que pareciam sem fim éramos reis e rainhas, príncipes e princesas, guerreiros de uma batalha para salvar o pé de bergamota da fome do dragão, o Gigante, que na vida real era um cusco de 30 centímetros que resgatamos ainda filhote na beira da estrada de chão. Gigante não cresceu, mas era um ótimo dragão quando roubávamos as vassouras de vovó para correr como cavalos no campo de batalha. Júnior, o garoto mais forte, vestia um colete feito de saco de batata como sua armadura e usava um cano de plástico como espada. Eu nunca era a princesa porque meus vestidos não eram rosa como os de Lúcia, a menina que tinha um batom roubado de sua mãe.
Mas quem sempre roubava a cena era Pagú, o filho do capataz. Ele mal tinha o que vestir, mas sempre tornava tudo fantasia e contava suas aventuras mundo afora sem jamais sequer ter atravessado o portão. Sonhava em aprender a ler, mas a vida lhe privou de tanta coisa que morrer analfabeto nem lhe foi o mais grave. Era criativo como poucos, contador de histórias capaz de nos deixar submersos em suas peripécias imaginárias por horas e horas, até que o cheirinho de bolo de cenoura nos tirasse a atenção.
Pagú tinha olhos grandes e sorriso largo, transformava estalos na madeira em histórias de terror dos fantasmas que ele jurava ver entre os pés de laranja quando o frio ainda fazia a criançada se esconder no porão da casa grande de meus avós. Sofreria se visse hoje que os laranjais não existem mais, que a casa grande virou ruína e a estradinha de chão ganhou asfalto e cheiro de cidade grande. Sofreu calado quando a safra foi fraca e teve que juntar os poucos pertences numa sacola de pano para ir com os pais tentar a sorte na capital, vivendo como outro qualquer numa vila pobre e abandonada por Deus, sem chances, e sem o futuro que eu desejava tanto que aquele magrela tivesse com toda sua imaginação.
De provável escritor virou bandido e sucumbiu às mazelas de uma vida de risco entre a sobrevivência e a dor de ser o que não queria. Meu avô, arrasado, bancou o funeral com poucas presenças porque bandido bom é bandido morto, como dizem os populares, sem jamais saber que o bandido em questão era um menino de bom coração que tinha fome e havia perdido a dignidade ao atravessar o portão da estância deixando pra trás as melhores recordações da minha infância. Dizem que ele nunca sorriu outra vez. Dizem que parou de contar histórias e passou a viver outras, mas sem ser mais o herói. Ele não gostava de ser o bandido.
Por vezes, quando a minha vida real permite, me curvo em seu túmulo sem luxos e relembro suas histórias, aquelas tantas que fizeram de minha infância um lugar bonito de se voltar. Todos ainda lembram de Pagú, que nos fez uma falta danada quando a adolescência foi chegando. Todos perdemos a inocência, mas conseguimos ter algum contato ainda para saber que aqueles tempos deixaram lindas marcas.
Júnior e Lúcia, como todos esperavam, acabaram por se casar e deram ao seu único filho, nascido anos depois da despedida de Pagú, o mesmo nome engraçado que tinha o menino, Patrício Gustavo. Eu, que sempre fora uma das guerreiras pouco ligando para os roxos nas canelas que as espadas de canos de plástico do Júnior me deixavam, dediquei a vida ao trabalho, aos valores que tive de meus avós e meus pais. Empresária de vida corrida, acabei por deixar no passado os sonhos de fazendeira cuidando das terras da família, divididas em várias partes e transformadas e condomínios para os ricos da cidade virem aproveitar os açudes que aliviavam nosso calor no verão que pouco durava nas terras de cá.
Nunca esqueci Pagú. As vezes penso que o amava, e que descrevê-lo como um garoto é pouco demais para se falar de um pequeno anjo de asas cortadas que caiu sobre nossas vidas com a mesma força de um meteorito, o mesmo que dizíamos achar toda semana entre as rochas perto da cachoeira, e vendíamos na porta da igreja o cascalho como rocha vinda do céu para comprar picolés de uva e limão na vendinha da vila mais próxima.
Éramos inocentes. Bons tempos aqueles em que chorei porque a flor do meu vestido azul se desprendeu no arame farpado e em que Júnior montou no bode do vizinho e deixou-lhe com problemas de coluna. Bons tempos em que Gigante, o cusco, se enrolava em meus pés na frente da lareira quando o frio era muito, e quando até Pagú se calava para ouvir as histórias de guerra que meu avô contava com doses de humor que nos faziam crer que as guerras nem podiam ser assim tão ruins.
Éramos inocentes. Éramos felizes. E até me satisfaço em saber que Pagú não viu o quanto tudo isso se perdeu. Mas eu jamais me esqueceria do jeito que seus olhos me olharam quando me viu de susto trocando o vestido num momento em que meu corpo entregava o quanto eu ia deixando de ser menina para me tornar mulher.
O tempo que passa e não apaga as lembranças. Por isso o papel de pão, um papel que embalava sabores de infância, hoje registra os dissabores da solidão.
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O além mar
O silêncio era sempre o mesmo. Nas noites insones caminhávamos lado a lado sem trocar uma palavra. As luzes da cidade soavam opressoras sobre nossos corpos cansados. Não podíamos voltar atrás porque havíamos ido longe demais e nos escondíamos nas muitas sombras sob viadutos habitados por mendigos e seus vira-latas.
Então corríamos pelas poças das últimas chuvas como se fôssemos meramente crianças procurando um pouco de paz de espírito em um mundo que não havia sido feito para nós. As madrugadas eram nosso playground onde construíamos nossos contos-de-fadas sem príncipes, princesas ou castelos. Eram cabanas de barros e simples plebeus, éramos apenas nós.
Nossa vida naquelas madrugadas podia ser facilmente definida como um resgate dos bons tempos que há muito tinham ficado pra trás. Não éramos mais crianças, tampouco maduros o bastante pro mundo em tons de cinza dessa turma “gente grande”. Não usávamos gravatas ou saltos altos e mesmo nos dias frios nossos pés ansiavam as pedras geladas perto do rio.
O silêncio era sempre o mesmo porque não precisávamos de palavras para decifrar olhares. Conversávamos com os lábios fechados e o coração aberto. Não precisávamos nos deixar ouvir a voz para saber exatamente o que estávamos pensando. E pensávamos no além mar.
O que poderia nos acontecer se resolvêssemos nadar?
As madrugadas eram sempre mais completas com nossas fantasias borbulhando em silêncio. Durante o dia éramos apenas fantasmas, espectros de vidas incompletas caminhando como zumbis entre tantas pessoas infelizes sobrevivendo à própria rotina. Não, não era isso que queríamos mas sabíamos que esse era o mundo que tínhamos a habitar.
Não poderiam haver sonhos na selva de pedras. Entre concretos e luzes artificiais, éramos sombras. Rastejávamos sob lamparinas com hora marcada para apagar, cruzávamos com os bêbados ressentidos pelo coração partido e invejávamos seu descompromisso com a vida real. Por mais perdidos que parecessem os corpos, ainda eram livres de alma.
Dávamos as mãos. Nossos devaneios tinham em si o poder da gravidade de nos puxar para baixo, para o fundo do poço, para o quinto círculo do inferno. Então dávamos as mãos para que nossas almas não se perdessem num vale de almas penadas tentando um lugar ao sol em plena luz da lua.
E era só isso que queríamos: nosso quinhão de paz.
Talvez tenhamos alcançado porque já não éramos apenas simples mortais quando nossos pés sangravam sobre o chão áspero das ruas da cidade. Éramos anjos sem asas, animais selvagens, aves de rapina. Éramos nuvens imitando coelhos, éramos focas malabaristas. Éramos apenas o que queríamos ser sem dever nada a ninguém.
Mas se tem algo que a vida real faz com maestria é o beliscão do despertar. E todo dia aquele maldito relógio nos lembrava de forma lúgubre e escandalosa que a vida real era tão implacável quanto a morte e nos aguardava ansiosa no cartão ponto e no vale-refeição. Enfrentaríamos ônibus lotados de pessoas que ali estavam apenas esperando a morte chegar enquanto aderiam à dança macabra da vida real.
Éramos parte de um sistema que não poupa ninguém e nos priva do direito de ter vontade própria. Éramos apenas peças em uma gigante engrenagem coreografada para funcionar sem nós, mas nós não éramos feitos para viver fora dela.
Então optamos pela madrugada, onde todos os gatos são pardos e os seres da noite nos pareciam muito mais interessantes que os zumbis diurnos.
Éramos parte da madrugada, mas ela não era parte de nós. E por isso o além mar já há muito nos seduzia. E sob a lua cheia, nadamos. Nunca mais fomos vistos.