Dois contos de Rubra Araujo
Rubra Araujo é doutora e mestra em Letras: Ensino de Língua e Literatura. Professora-adjunta na graduação e pós-graduação (mestrado) em Letras da Universidade Federal do Tocantins/UFT, câmpus de Porto Nacional. Pesquisa e atua na formação inicial e continuada de professores de linguagens, leitura, relações de gênero, diversidades/diferenças e suas interfaces com a Educação. É autora de Estranhando o currículo: a temática homoafetiva no ensino de literatura infantil (Metanoia, 2018) e Gênero, diversidade sexual e currículo: práticas discursivas e de (não) subjetivação no ambiente escolar (Metanoia, 2016). Prepara sua autobiografia e escreve também narrativas ficcionais.
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Desabafo de uma transgênera numa noite de natal!
É noite de 24 de dezembro – a cidade, a casa, tudo se encontra luxuosamente decorado com luzes brilhando, o vermelho como a cor do luxo impera em cada decoração cara e ostensiva!
Todos se divertem, as residências estão cheias de entes familiares, os bares estão vazios….o cenário da farra não é público, mas restrito ao ambiente privado e domiciliar. Após o relato que passarei a noite solitária, o amante socialmente proibido, completamente compadecido, me propõe que eu participe da ceia de sua família como convidada, desde que me disfarce, use trajes discretos, não me importe com a sua parceira de seu relacionamento heterossexual e finja inexistir toda a nossa intimidade tão profunda… ou então, adentre-me à festa como uma pessoa desconhecida e lá, eu me comporte como a palhaça de performance exótica para diversão de todos, tornando-me a aberração para um bando de ignorantes que se dizem heterossexuais e buscam saciar suas curiosidades a respeito da promiscuidade sexual, olhando-me como foco da hiper sexualidade ou perguntando sobre como seria a vida real de uma trans… Uma amiga que se traveste de heterossexual também me convida para cear com sua família: lá, eu seria a companheira da amiga que se enveredou para esse mal da homossexualidade, ao seu lado, seria vista como a má influência de companhia ou também ser passível da cura gay empreendida pela comunidade evangélica conservadora do biopoder…
Minha família também preparou um banquete em minha casa, muitos convidados (parentes, vizinhos…) se aproximam, cada um vem com sua família heteronormativa (filhos, esposas, maridos,…) : Em minha própria casa, eu serei o alvo das aberrações dos olhares curiosos ou serei o objeto de saciar o desejo homoerótico daquele maridão heterossexual no banheiro escuro do pátio de casa quando o tesão bater na subversão do homem casado cristão embriagado pelo excesso de vinho ou cerveja (porém, após o gozo, serei ameaçada de morte se ousar revelar para alguém o que rolou nas quatro paredes do banheiro, embora ele tenha sido passivo ou ativo na relação sexual) ou então ficarei sentada no canto, enquanto as mães/pais de família abraçam seus filhos, dando-lhe presentes caros que tentam suprir a ausência de diálogo em sua relação maternal/paternal, as pessoas disputam quem oferece presentes mais caros/sofisticados e, automaticamente, cobram a troca daquele presente que sempre almejaram, ao longo do ano…
Todos se aproximam da mesa da ceia e comem demasiadamente, enchem seus pratos e esbaldam-se nas guloseimas ou aperitivos típicos do natal, ignorando que praticam o pecado capital da gula com os excessos cometidos, esquecendo-se do colesterol ou baixa concentração de glicose no sangue (Hipoglicemia). De repente, após dormirem nos sofás, soltando seus ventos pelos orifícios rugosos do corpo ou excederem-se nos despautérios etílicos, abraçam-se mutuamente, esquecendo os silêncios que prevalecem em suas rotinas cotidianas e dizem que são a família cristã perfeita e que mais uma vez viveram o verdadeiro espírito natalino e eu, ao lado do humilde aniversariante, dependurado na árvore iluminada ou esquecido na manjedoura, permanecemos esquecidos, refutados e ignorados…
Sinceramente, não conseguimos comungar da ceia farta de hipocrisia que ignora que a festa cristã tem sua origem no rico paganismo e ainda sem conceber a lógica insana de substituir um menino deus que nasce pobre num estábulo pela figura de um senhor imponente, senil, obeso e propagador do consumismo exacerbado.
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Um conto escrito em 2015: um misto de desabafo & devaneio:
O bolo de domingo
Era uma tarde de domingo, a vida prosseguia lá fora com as hipocrisias regadas ao álcool dos finais de semana em uma típica cidade do interior do norte brasileiro, de uma casa vizinha, era possível ouvir as algazarras mistas de latido de cães, miados de gato, choros de crianças, balbúrdia de vozes humanas alteradas pelos teores etílicos, tudo confundido com um som alto de músicas com letras de puras sofrenças. No ar, pairava um cheiro misto de churrasco e frango cozinhando nas panelas de pressões.
Levanto a cabeça ainda totalmente sem roupas no corpo, confesso que não consigo encontrar disposição para enfrentar todo este cenário de rotina de domingo. Permaneço em meu quarto escuro, envolta em meus lençóis macios que me aquecem na temperatura fria promovida pelo ar condicionado. Navego na internet, via meu aparelho de telefone celular, trafego pelas redes sociais e deparo com postagens de fotos de pessoas exibindo copos de cerveja como troféus, maquilagens derretendo em fundos de quintais e cópias de compartilhamentos de ideias e pensamentos alheios, sem sequer tecer reflexões autorais.
Nada me apetece, as horas passam vazias…
De repente, adormeço com os ponteiros acusando que o tempo avança na monotonia de um dia de domingo… Viro para o lado e ouço o telefone celular tocando, o toque insiste, eu o atendo com voz rouca e desfalecida. Ouço sua voz dizendo-me que viria para meus braços, que viria trazer-me aquecimento com seu corpo forte para toda a carência e fragilidade que invade o meu eu.
Esta promessa me revigora, levanto-me rápido, higienizo todo o meu corpo, preparo-o ritualmente como um lócus do encontro pleno do regozijo, preparo o ambiente de meu quarto como o cenário ideal para sediar o banquete do prazer: distribuo velas aromáticas pelo quarto, refrigero o local com incensos e troco os lençóis, substituindo-os por finas e decoradas fazendas. Adorno meu corpo de sensuais lingeries, hidrato-o com cremes e óleos afrodisíacos: tudo está perfeito à espera do ente amado…
Olho para o relógio e os ponteiros continuam a avançar, reclino-me sobre os alcochoados carpetes e adormeço no assoalho solitário de meus aposentos. Acordo já quase madrugada, o quarto frio e mórbido, sinto uma sensação de ser um corpo de defunto preparado para o velório num necrotério inóspito, tudo é frio ao meu redor, o celular parece que não existe, nas redes sociais nenhuma notificação, tento recompor minha ansiedade, reconfortar minha solidão e continuo a esperar…
As horas passam e você não vem, ligo a TV e deparo-me com noticiários tristes, então, meus dedos quase inertes discam seu número e a secretária eletrônica me encaminha para a caixa de mensagens… Levanto a cabeça e me sensibilizo de que o que me resta é saborear o enorme bolo de chocolate com recheio de chantilly que recebi de você neste dia frio e solitário de domingo.