Dois contos de Vanessa Gonçalves
Vanessa Gonçalves: professora, mãe, produtora cultural, editora e idealizadora da editora independente Rizoma Projetos Editoriais.
“2020 veio com todos os seus desafios, com todas as suas (im)possibilidades, e nesse lugar (ou não lugar) que decidi, criar minhas linhas de fuga por e pela arte. Pensar, criar, pulsar pela literatura, teatro, dança… essa é uma busca e uma parte do que compõe a multiplicidade do meu ser”.
***
Duplo
No Messenger do Facebook uma mensagem chama sua atenção. São 32 mensagens ignoradas que a fazem lembrar da preguiça que tem de estabelecer novos papos e que toda tentativa masculina de conversas nesse ambiente a empreguiça de diferentes formas, mas não é sobre isso. A mensagem poderia ser a trigésima terceira se não fosse pelo que dizia. E era isso aqui:
******* enviou 15 de maio às 21:29
Boa noite. Desculpa falar assim, mas acho que já fiquei contigo.
Você enviou 15 de maio às 21:31
Hahaha
Será? Acho que não
******* enviou 15 de maio às 23:19
Hm, se não for vc é muito parecida, os cabelos e o sorriso. 2020 logo antes do carnaval, no largo da batata, chovia. E vc mora no Arouche.
Poderia ser a trigésima terceira mensagem ignorada se não a tivesse levado para agosto de 2011. Uma apresentação privada de um cantor alagoano de MPB para uma galera cult da cidade. Ricos alternativos. Artistas independentes. Essa galera descolada que faz a gente achar que tem ricos que valem alguma pena. Ele cantava o verso mais bonito da música que tinha composto com Ney Matogrosso. Então ela sorriu porque ele a olhou. E ela sorri quando a olham demais. Ou então abaixa os olhos e curva seus ombros. Mas as pessoas eram descoladas e a música bonita, então sorriu. Está parada no bar pegando mais uma caipirinha quando ouve alguém dizer, a voz que pouco antes cantava:
– Hmmm… acho que conheço você. Festa de São João em Alagoas. Se não era, era muito parecida! O sorriso era o mesmo!
– Não era eu não. Nunca fui no Nordeste na vida.
É aí que a gente ri e pensa que a maioria das pessoas em algum momento da vida devem sorrir… em vésperas de carnavais e são joãos, principalmente. Espalhamos sorrisos por aí como se o mundo fosse acabar em frevos e bandolins. Seria bonito.
Essa poderia ser a “ésima” vez que alguém tentou puxar um papo, se não a tivesse levado para um mês qualquer de 2007. Ônibus lotado de estudantes indo para a Universidade Federal. Cara enfiada em fotocópias sobre Antônio Cândido e o papel humanizador da literatura. Se espremendo e se apertando entre mochilas, fichários, fotocópias e pessoas dormindo penduradas, vem em sua direção e se senta ao seu lado um cara. Ele sorri. E ela sorri quando a olham por muito tempo ou abaixa os olhos e curva seus ombros feito uma concha que não se quer abrir. Mas ele era simpático e fez tanto esforço para se sentar ali, que então sorri.
– Oi!
– Oi.
– Acho que conheço você! Festival de Inverno em Bonito tem uns 2 anos. A gente viu Almir Sater… se não era você era muito parecida! Pelo menos o sorriso eu lembro!
– Não era eu não, moço. Nunca fui no festival de inverno em Bonito. Minha mãe nunca deixou.
Dizem que para cada um de nós há um sósia por aí. Um duplo.
Ela pensa nessa parte descolada dela mesma que tem beijado pessoas legais em vésperas de festas e desaparecido nos dias desde 2005. Nenhum soube dizer seu nome, apenas que se lembravam. Porque ela sorria, se lembravam. Ela passa a pensar nesse seu duplo que gosta de carnavais, são joãos e festivais, diferente dela que acha lindo, mas não consegue lidar com tanta gente junta. Mas que sorri e porque sorri fazem se lembrar dela.
Não continuou o papo com nenhum deles. Não houve contato mais. Não mora no Arouche, não celebrou São João em ruas de Alagoas, nem pode ir a um festival em Bonito. Cuida da história dessa outra que desconhece, mas que a acompanha.
Não continua os papos, mas sorri.
*
Fármacos
Ela precisava trair para se sentir menos culpada por sair daquele lance. Veja bem, detestava quebrar acordos estabelecidos. Eram monogâmicos, não havia abertura para terceiros. Quebrar acordos a destruía e precisava se sentir destruída para se sentir menos culpada pelo real motivo que a fazia sair daquela relação. O prognóstico não era bom. Os dois tinham 21 anos. O médico a chamou e foi claro:
– Sabe aqueles malucos que você vê gritando na rua, jogando pedras nos outros? É assim que ele vai ficar. Você é jovem demais para cuidar disso. – jaleco branco e tudo mais, se levanta e até logo.
É devastador. Mas depois do surto, do tapa na cara, da traição dele que justificou com a doença e da crise pós tudo, era melhor mesmo trair. Trair para inventar uma desculpa que não fosse a dura verdade “não consigo segurar essa barra que é gostar de você, me perdoe.”. Não era tão boa, não era tão santa, não era tão abnegada, não era tão devota, não era tão… tão… tão mulher…
Trairia para se punir, não contaria para ele. Mas carregaria esse espinho na carne que era o de ter transado com outro numa tarde em que ele, depois de quebrar guitarras e computadores jurando que o estavam espionando, desmaiou na cama dopado de Risperidona e Olanzapina. Transando com outro ela teria coragem de sair daquele labirinto cheio de antipsicóticos que marcavam o trajeto para fora. Um fio de Ariadne de fármacos.
Veja bem, detestava quebrar acordos estabelecidos. Naquela tarde transou com outro enquanto ele babava na cama e negava a ajuda de todos.
Chegou em casa. Não conseguia olhar para ele jogado naquele quarto escuro, o acordo havia sido quebrado junto com guitarras e computadores. Ela não suportava quebrar acordos e porque quebrou sabia que tinha que ir.
Enfiou algumas coisas numa mala.
– Não consigo segurar essa barra, meu bem, me perdoe…