Dois contos e um poema de Marithê Azevedo
Marithê Azevedo é doutora em Artes Cênicas pela USP na linha de literatura dramática. Roteirista, cineasta e propositora de poéticas urbanas. Nasceu em Alfenas/MG, habitou as cidades de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo e atualmente habita a cidade de Cuiabá/MT. Entre os filmes curtos de ficção que realizou, estão: A noite nossa de cada dia, Traquitotem e Licor de Pequi. Entre os documentários, Memórias Clandestinas, prêmio de melhor documentário brasileiro no Femina, e As cores que habitamos, em finalização.
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Vidraças quebradas
O rosto grudado no vidro da janela, ora metamorfoseava-se em contornos volumosos e densos, ora ofuscava-se no embaciamento deixado pelo ar quente da boca. Desapegada do tempo, me envolvi na brincadeira infantil de formar e disformar o rosto no vidro. A criança aparecia e desaparecia, sem perceber que eu estava ali a observá-la.
O bafo reagindo ao frio de fora, nublava a sua imagem anamórfica. A mãozinha curiosa limpava a névoa revelando seus olhos verdes de mistério.
Quando o menino percebeu a minha presença, aprumou o corpinho como um pequeno soldado e sorriu sem graça, afastando-se da janela. Rastros da sua figura ficara impressa no vidro.
Fico ali esperando o seu retorno para me reconciliar, ou até pedir-lhe desculpas, por ter, com o meu olhar, interrompido a sua brincadeira. No espectro da imagem que se fora, uma sombra se move. Vindo dos altos, um estranho barulho de asas ataca a vidraça que estilhaça, espirrando partículas de vidro para todos os lados.
Tento fugir do alvoroço que vai ocupando o espaço da rua sem medidas. Um odor sólido de sangue velho penetra os poros e atinge a espinha. Na tentativa de decifrar o que se passa, tento olhar para cima, mas uma enorme asa me derruba no chão. As penas coloridas que se desprendem do alvoroço, amontoam sobre o meu corpo.
Procuro apoio em algo firme, mas tudo está liso e viscoso. Me abraço então a um poste, ao mesmo tempo em que tento tirar uma pena que grudou na boca seca. Até que passe o furacão, fecho os olhos e me torno estática como uma extensão do poste. Aos poucos a arruaça vai amainando e os estragos deixados na paisagem se revelam. Cambaleante caminho em direção ao ponto de ônibus, dispensando as penas grudadas no meu vestido. Os enormes pássaros se afastam no pedaço de céu que sobrou. Olho para trás e vejo a janela quebrada. Lá está o menino sem anamorfoses ou embaciamentos me observando, com seus olhos verdes de mistério.
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Formigamentos
Pegou o embornal sebento e acocorou-o nos ombros. Acertou o chapéu na cabeça como se, com ele, pudesse aparar o turbilhão que lhe formigava a mente e acizentava o espírito perturbado.
A ingênua estradinha de terra, agora, parecia-lhe um caminho para o cadafalso. O coração acelerado bambeava as pernas e as passadas iam marcando como um tambor a caminhada entorpecedora. Os sons do seu pensamento turbulento invadiam o espaço e apagavam as linhas da paisagem. Céu e terra misturados, o horizonte desaparecera. Os pés movidos pelo formigamento que lhe atazanava, descompassava do corpo endurecido que o impedia de agir. Os pensamentos derramados sobre a estrada abriam uma fenda na escuridão.
Há uma fria escada por subir e uma pesada porta por transpor. E como um ferro fundido rangendo na madeira, a porta se abre.
O turbilhão está prestes a explodir.
Procura por socorro, no chão, nas paredes, no teto.
E através da telha quebrada do telhado, vê um pontinho que brilha no céu. Atraído pela tênue luz, entrega-se a este estranho espaço vazado.
E lentamente a luz penetra seu corpo entrevado e cria uma camada de alerta.
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Geringonças
Geringonças e apetrechos apertam-me e sujam meu peito pulmonar.
Asfixiam-me nas comportas.
Não dilatam o que deveriam dilatar.
Sem sono vagueio de ônibus em ônibus por esta cidade desnutrida.
Só o pulsar do outro, o infante, me nutre as sete almas entorpecidas.
O fora é alvoroço sem fim, sem começo.
O dentro é desconhecido.
De cima vem a tempestade em cacos de trovão, que mudam o lugar das coisas.
O medo germina a dor.
Dirce
Parabéns pelos contos, poemas. Fico feliz em saber que existem pessoas talentosas e maravilhosas neste mundão. Parabéns MaritE e professores envolvidos.❤🌻