Dois excertos de romance de Leonardo Valente
Leonardo Valente é escritor e nasceu em Niterói-RJ. Além de “criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos” (2021), tem outros três romances e uma antologia publicados, entre eles “Apoteose” (2018), “O beijo da Pombagira” (2019), finalista do Prêmio Rio de Literatura, e “Calote” (2020). Foi um dos vencedores do Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores (UBE-RJ), com um original ainda inédito. Jornalista e doutor em Ciência Política, é professor de Relações Internacionais da UFRJ.
Os trechos abaixo integram o romance “criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos” (2021).
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(trecho da página 51)
não quero um título aqui
pensei melhor. congelar minhas profundezas talvez seja deixar para a posteridade traços de mim que eu mesma até então desconheço, preservar por tempo indefinido os buracos negros que me constituem e que prendem por efeito de gravidade; congelar-me é a maneira mais fácil de me quebrar em mil pedaços; é também em certa medida me conhecer para depois me esquecer, pois é impossível esquecer o que não se conhece. minha busca pelo conhecimento sobre meu eu que considero oculto, e sua explanação sem limites, tem como fonte primária uma voraz vontade do mais completo esquecimento de mim mesmo. para Heidegger, os subterrâneos da especialização científica resultaram no esquecimento do ser, já o esquecimento do meu ser será fruto do mergulho aos porões das especializações e subdivisões de tudo o que me constitui em essência.
pareço-me ambígua neste e em outros momentos, mas sou de uma ambiguidade apodítica. desistam de me entender se não compreenderem que me encontro desapossado pela História e que consigo escapar dela; que nestas páginas o infinito da alma deixou de ser um apêndice sem função por conta da vontade humana inata de classificar e de julgar, e voltou a ser cerne, meu cerne; que minha noção de escrita se relaciona com a sabedoria da incerteza e com a relatividade essencial das coisas. a base de minha narrativa é uma interrogação, jamais uma taxonomia cartesiana. sou menos Balzac e muito mais Samuel Richardson. sou pretensiosa, sou contra o progresso do mundo.
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(trecho da página 117)
cheiro
li dia desses em um livro que muito me marcou, um texto teatral, que uma das coisas mais impressionantes do olfato é sua capacidade de adaptação. toda vez que somos expostos a um odor muito forte, a sensação olfativa inicial é sempre muito intensa. pouco tempo depois, contudo, torna-se imperceptível. o cheiro da urina, por exemplo, que provoca repulsa em quase todo mundo. o cheiro da urina pode ser algo insuportável para quem se aventura a bebê-la, mas pouco tempo depois, o mijo que entra pela garganta se torna inodoro, como água potável. no sentido inverso, quando um cheiro é bom, ele pode nos levar a colocar um objeto na boca e a perceber logo em seguida que fomos enganados por nossos sentidos, uma vez que cheiro não é gosto. nesse livro, também aprendi que o sistema olfativo dos humanos é capaz de identificar somente um odor de cada vez, mas que esse odor pode ser uma combinação de vários outros odores diferentes. quando em um mesmo ambiente existem muitos odores, o mais intenso será o dominante, e quando eles se equivalem em intensidade, os odores sentidos vão oscilar.
se minha vida amorosa foi por tanto tempo inodora como água potável, é porque me acostumei com seu fedor, porque perdi o olfato por puro instinto de sobrevivência, recusando-me a sentir os odores dominantes em minhas diferentes fases. também perdi a conta das tantas vezes que mordi cheiros bons e descobri gostos intragáveis, muitos envenenados. fica aqui meu manifesto por tudo o que perdi na vida simplesmente por não ter habilidade com os cheiros.