Dois pequenos contos de Carolina Serra Azul
Carolina Serra Azul é pesquisadora e professora de literatura. É mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com dissertação sobre as relações entre Guimarães Rosa e o primeiro modernismo brasileiro. Atualmente, é doutoranda na mesma instituição, onde pesquisa os nexos entre cinema e literatura no período pós-1964.
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Entre com cuidado no amarelo piscante
Enquanto o pobre tiver estômago, o rico terá medo. Talvez seja melhor dizer: enquanto houver fome, eventos estranhos podem acontecer.
Quando eu caminhava pelas ruas durante aquela grande greve que durou quase uma semana, a palavra caminhoneiro atravessava o ar, destacando-se entre os muitos barulhos da cidade. Um rapaz varre a rua conversando com uma moça; dois homens sentados em frente à oficina mecânica; a vendedora na estação de metrô e seus clientes; alguém ouve os stories do mc kevinho: caminhoneiros, mais que vocabulário comum, uma identidade, finalmente: somos todos.
Do ponto de vista do trabalho contemporâneo, somos de fato todos caminhoneiros. Uns mais do que outros, é verdade. Não é arbitrário, assim, que entre os meus a palavra caminhoneiro não fosse tão constante quanto a palavra lockout. Na falta da figura do líder salvador, erigido ou não do povo, com palavras de ordem, ambíguas ou não, a impossibilidade de organização da massa era dada como certa. Quem organiza, pois, é o patrão. Além disso, viabilizado por bons – ou maus – pobres conservadores, o lockout tem viés fascista. A classe média progressista dorme tranquila, nada de novo sob o sol do país, já se pode novamente lamentar pela fatalidade de tudo.
(dormir tranquilamente, aqui, é uma força de expressão, é claro: há muito a pequena burguesia não dorme bem e vale-se das mais variadas estratégias para mergulhar do outro lado de sua cabeça, e talvez seja por medo que precise da condução do clonazepam, Caronte necessário mas inconveniente, pois uma vez no mundo do sono somos obrigados a ver as imagens que evitamos: de repente, a minha cabeça é cortada.)
Mas lá onde de fato a revolta importa, os caminhoneiros trouxeram para a superfície a solidariedade de classe, pararam estradas, cidades, abastecimentos, mostraram o nexo entre todas as coisas, que não surgem no tanque do carro ou na mesa do restaurante por encantamento: são feitas e transportadas. Os caminhoneiros, que circulam com as mercadorias que os carregam, quiseram carrega-las. Terminaram correndo sob balas do exército: na TV, um indivíduo de alta patente (seu uniforme era branco) anunciava o fim da greve dos caminhoneiros para proteger a democracia: eles pedem intervenção militar, e não é isso que o exército brasileiro quer, disse o homem fardado.
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Proibido colar cartazes
1.
Em algum lugar da Rebouças, perto do Hospital das Clínicas, há uma briga num muro. “O comunismo matou 100 milhões de pessoas”, alguém escreveu com spray preto. Mochila nas costas, breu em torno, um carro ou outro corre na avenida, alguém se arriscou para gritar aos paulistanos transeuntes, motoristas, passageiros, pacientes do hospital: o comunismo matou 100 milhões de pessoas. Se no escuro essa pessoa, spray na mão, fosse surpreendida pela luz do giroflex, talvez dissesse: minha denúncia é contra o comunismo, não sabemos se o policial borrifaria o spray na cara do indivíduo até que não se visse mais sua pele, se tiraria uma fotografia do rapaz cara-preta-de-spray e enviaria para o grupo do batalhão, se apenas socaria o duodeno do escrevedor de muros, ou se, num momento de empatia, diria: então termine o trabalho, filho, quero ver se é contra comunistas mesmo. Sobre sua denúncia não passarão tinta; talvez o prefeito até se orgulhe dela quando estiver flutuando no ar depois de dobrar os joelhos sobre o trampolim da cidade, ele dobra os joelhos, abre os braços e salta da capital para sobrevoar o Estado.
A despeito de tais suposições, fato é que passaram tinta sobre o escrito do dedo de seta dos crimes do comunismo (100 milhões de pessoas!). Como um professor que corrige com caneta vermelha a palavra ortograficamente incorreta, outra pessoa se arriscou dentro da noite passando uma linha de spray preta em cima da palavra comunismo. Sobre a palavra, agora atravessada por essa linha, o corretor escreveu: capitalismo. Também foi alterado o verbo matou: novamente, com um borrifo firme de spray se corta o escrito e em cima se escreve: mata. Temos, então, a nova frase no muro da Rebouças, o capitalismo mata 100 milhões de pessoas. No dia seguinte, alguém que passa de carro olha para o muro e pensa: ainda bem que riscaram, que discutiram, oh! a disputa de narrativas nos muros da cidade, temendo em algum lugar de si que nessa noite as palavras sejam novamente riscadas e os termos novamente substituídos, será que alterarão o número de mortos, e em breve mal se verá o muro com tantos riscos sobre comunismo, capitalismo, verbos no passado e no presente.
2.
Enorme, ALTA MIRA no topo, uma criança indígena tem a cabeça contornada pela mira de uma arma. Há tempos (quanto?) esse grafite permanece intacto na Consolação, por sorte não estava naquele corredor da cidade em que foram apagados todos não se sabe se por birra ou se por algum motivo só conhecido por quem comanda essas coisas, apagar um grande corredor colorido, ação que como tantas do acaso lança no ar um presságio.
Por outro lado, é de se duvidar que a criança na mira da arma figurasse nos grafites da 23 de maio, por certo essa imagem acompanhada do quase letreiro ALTA MIRA extrapolaria os limites da liberdade de expressão, curadores estão aí também pra isso.
Em outro ponto da Consolação, um pouco mais distante do Mackenzie, num muro mais abandonado pelo proprietário, enorme dívida de IPTU, ali num muro desses o rosto de Marielle Franco encara aberto a avenida. Sorri. O trabalho minucioso de alguém (mais de um?) reproduziu num muro a prova dos nove da vereadora: sorriso e luta. Não se sabe se de dia ou de noite, alguém veste a camiseta, calça os sapatos e abandona o apartamento para comprar duas latas de tinta vermelha. Talvez abandone o imóvel para buscar as duas latas, paradas numa reforma que nunca acaba, ou esquecidas no ateliê, na loja de construção do avô. Alguém (mais de um?) se equilibrou em uma moto com duas latas de tinta vermelha, ou as colocou no porta malas do carro, ou caminhou carregando o peso. Situou-se diante de Marielle, calculando a distância adequada, refletindo sobre a obra que estava prestes a realizar.
(certamente não se trata de trabalho tão minucioso quanto espionar uma mulher, decorar seus hábitos, estar a par de sua agenda, escolher munição adequada para dar recado, molhar a mão de colegas, desligar as câmeras da cidade após o evento mulheres negras movendo estruturas e abrir fogo contra ela e Anderson)
Alguém dentro da noite talvez tenha derramado algumas gotas de tinta vermelha no chão ao impulsionar a lata para trás, precisão e calma, tem de ser de uma só vez, talvez mais de um ao mesmo tempo, balança a lata para trás e depois, à distância calculada, despeja o líquido denso contra o muro. Parece que em Pinheiros, num escadão, o rosto dessa mulher é refeito e destruído com certa frequência. Na Consolação as duas bolas de tinta vermelha permanecem, escorridas e secas, sobre o rosto que sorri, obra terrível a céu aberto. Mais pro fim da tarde, será iluminada por um instante pelos giroflexs que chegam para escoltar a turba que invade a Maria Antônia.