Dois poemas de Claudia Freire
Claudia Freire nasceu em São Paulo capital, em 09 de dezembro de 1973. Formou-se em Jornalismo e História e, posteriormente, em Tradução, área em que atua há 20 anos. Publicou “Ressonância”, seu primeiro livro de poesia, em abril de 2019, pela editora Urutau. Urbanoide em essência, foge para a montanha ou para o mar sempre que possível. Quando impossível, esconde-se de outras formas. Cláudia também escreve sob o pseudônimo de clo em https://clopoems.wordpress.com/
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Otimismo Lúcido / Lucid Optimism
Cortem-me a cabeça
Arranquem-me as mãos
Ceguem-me
Que minhas pernas
Minhas longas fortes pernas
Eles jamais alcançarão!
Findo o toque de recolher
Benzo-me sob cinco certezas:
– O domo de São Pedro toca os céus
– Não darei a outra face
– Estas meias aguentam mais um inverno
– Seu sol, que é meu sol, é imune a tiranos
– Atravessarei esta terra incógnita
e um oceano sem gravidade
para te encontrar às 6 da tarde
do outro lado da cidade
ainda que tentem deter
Minhas velhas trôpegas pernas
LUCID OPTIMISM
Chop off my head
Cut off my hands
Blind me
‘Cause my legs
My long strong legs
They will never reach!
The curfew is over
I bless myself under five certainties:
– Saint Peter’s dome touches the skies
– I will not turn the other cheek
– These socks will last another winter
– Your sun, which is my sun, is immune to tyrannical leaders
– I will cross this terra incognita
and a zero gravity ocean
to meet you at 6 o’clock
on the other side of town
even if they try to stop
My old stumbling legs
Cardiopatia
Teu coração é um maquinário denso
preciso.
Em nada lembra as ilustrações de livros médicos.
É tanto mais, em seu íntimo,
assemelhado a um mecanismo de relógio
com suas engrenagens de mandalas em intrincados giros
ora atrasando-se, ora adiantando-se.
Teu coração tem acoplado o próprio jogo de ferramentas
para os dias urgentes em que a saudade o enguiça
bombeia fraco
no ritmo arrastado de uma dor
Espremido por suas paredes
troncho no labirinto de suas cavidades
assustado, tentando organizar a contramão de fluxos sanguíneos
defasado, lutando para esconder sua manchada biografia.
Encolhido e ressequido
apenas se conforma
dentro de um peito sertão árido
Quase já não há o que o faça resistir
Antes escolhesse bater do lado de fora
já que deste beco, saída não há.
As ferramentas são úteis também para os dias de mera manutenção da complexa mecânica
quando tal peça se expande em tamanho de mundo
em ritmo muscular elástico
órgão ginasta dilatado
acelerado como avistasse uma linha de chegada
ou o amante dobrando a esquina
Nutrido de bem-dizeres
falando sem sotaque algum
flutuando em levezas juvenis
Muito antes de se perder
Antes de enveredar por escuridões suspeitas
Antes de viciar no vazio
e de se acostumar ao perturbador eco
manifesto na cava de tuas veias a cada grito de socorro
Quando seus sopros ainda eram algo natural
Quando ainda recobrava o pulso sem grandes esforços
e se orgulhava do peso de teu prefixo “cor”
real depositário da memória.
Teu coração é uma máquina tão perfeita que quando parou,
em poucos segundos,
também o mundo parou
E antes que pudessem dar conta do silêncio
já nada mais havia.