Dois poemas de Douglas Souza
Douglas Souza nasceu em 1976 em Mauá no ABC paulista, passou a maior parte da vida em Santo André, há alguns anos vive em Ilhabela no Litoral Norte de SP. Poeta, artesão e artista visual. Utiliza vários meios como a escrita, colagens e vídeo. Tem poemas publicados em diversas revistas e antologias.
Os poemas são inéditos e fazem parte do livro que será lançado em breve pelo autor.
Reúne seus trabalhos na página Toxidade.
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A MERCÊ DE MOROS
para Montse
Deixa a mão do tempo
desenhar
o contorno das águas e
suas espumas
Deixa a língua dele
lamber
a nuca do teu segredo
de ferrugem
Finca teus pincéis
flechas -separadamente-
sobre a pele da memória
como um tigre
cravando suas unhas
no acrílico, tinge
a crina voando a galope
a beira da tela: não põe nada
risca um traço fino
e deixa a mercê, sem assinar
teu nome é de vento
e destino
e a morte um cavalo
com patas de ferro
calcando e
recalcando a tela
que é o chão duro,
como as ondas
moldando
(até quando?)
a argamassa
de um fino futuro.
*
ACERVO DOS DIAS
o que se faz quando o sono escapa?
cala os pássaros para que o dia não nasça?
o que se faz quando a caneta não escreve?
devora a biblioteca de Alexandria e mata a fome da palavra?
– haverá bicarbonato pra tamanha azia? –
e o que a gente faz quando a memória já não cabe nas gavetas da casa?
haverá um depósito de sucatas que compre tudo por kilo?
de olhos arregalados fito as ripas do teto
tentando inutilmente coordenar a contagem
(dos dias -muitos-,
das perguntas -sete-,
das ripas do teto -cinquenta e quatro-)
aos ponteiros do relógio que rege uma sinfônica de dinossauros ao pé-do-ouvido
os dias, os pássaros, as palavras,
voam indiferentes ao registro dos olhos
e penso em Ernesto Sábato dizendo:
“a vida não é um livro de contabilidade”
o rastro do voo compõe o voo e sua ave
a página em branco também é o poema
em sua brancura,
em sua ânsia e angústia de proto-poema
e são também
as noites em claro
(a cisma atravessada na boca estômago)
com perguntas e respostas que são a mesma coisa
o travesseiro de pedra dos dias,
seus incontáveis sonhos e poemas inacabados
habitantes invisíveis
eternos
jamais
e
um mosaico de fosseis.