Dois poemas de Fred Vieira
Fred Vieira [Frederico Augusto Messias Vieira] é de Ilha Solteira – SP. Formado em design gráfico, atua como motion designer em uma rede de televisão. Mudadiços é o nome de seu primeiro livro solo, de poemas, pela Editora Patuá. Começou a escrever em 1998 e já participou das antologias Hiperconexões – Realidade Expandida volume 2, Hiperconexões : sangue & titânio e Escriptonita – Pop/oesia, mitologia-remix & super-heróis de gibi, todas publicadas pela Patuá. Contribuiu, também, com alguns poemas para a revista eletrônica Mallarmargens. Atualmente, mora em Cotia/SP com família, livros e poemas.
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num lugar específico do samsara
bethania, betânia, virou bibica
minha querida avó
bibica, dizia ter vocação para semente e planta
criava, entre outras tantas, árvores-de-casca-de-dono
maravilha bioengenhada
que captura as feições de bicho ou dono próximo
como um lento filme fotográfico
desenhado sob a luz que se fizer duradoura
com relevos e curvas topográficas
em sua casca animais de estimação plasmando
casais e outras coisas que fiquem à mira juntas
assim as árvores-de-casca-de-dono são
mas adoentada e querida, naquele tempo, dona bibica
despediu-se-nos pedindo no quintal um caixão
entre espigas, ervas, bulbosas e hortaliças
queria tanto que foi atendida
junto de sua árvore mais querida
despediu-se da carne
espalhou-se entre vermes, minhocas
fungos, bactérias, entre outras digestões humildes
honrosa
e, quando nossos cabelos já brancos
inspirados por saudade umedecida de pranto
resolvemos revisitar seu corpo
imaginando nada mais que esqueleto
terra e resto
foi o que encontramos
além de uma semente no fundo do madeiro
pequena e com a casca desenhada
resvalando nossa memória enchamejada
dali para mais ali, plantamos ao lado
a semente de árvore-de-casca-de-dono
cresceu farta
e jovem, quando fôramos centenários
começou a sugerir uma feição próxima
à paciência e velocidade medrada definiu-se
a feição engendrada
com uma familiaridade que já podes auferir
vovó retornara?
por entre fotogramas e filmes caseiros
tal árvore protagonizou de cenário
tendo como apanágio uma bibica de rosto
mostrando sempre uma nova cara
de meses em quando
o que nos surgiu, assim, de jogo
foi filmar longamente e assistir acelerado
pra perceber uma possível série
e, por assim, foi concretizado
o inesperado:
o rosto dizia palavras
a face dizia frases
e, depois de longos meses
um recado foi dado:
cuidem-me bem
estou aqui
enraizada, amando
com o coração esticado no tempo
gozando longo com vocês
mais raízes entrelaçadas
a outras fitoquímicas amizades
no tempo das árvores
frutando esgarçada
as flores de ampulheta parada
imaginariam que estivesse, assim, realizada?
…
a traquinagem fora espiritual
ou em laboratório calculada?
um prêmio ou grilhão kármico?
nossas dúvidas demoraram para serem contentadas
mas quando foram
escolhemos por opção o prêmio kármico
em debates de meses e anos que levamos
com bibica, claro!
quando ensaiamos um início de mata
brenha familiar
quando também transmigramos para árvores
*
Canhões e Lila
risos hahas espasmódicos e silenciosos / sexta-feira / Lila, farta nas ideias,
que se espera que diga algo: e fala coisa outra!,
pura finta de inteligência; insinua
anarquias sexuais,
deixa latente a recompensa,
na cabeça dos amigos e dos excitados encaracolada
sexta-feira é dia de personas-bala
show de pessoas disparadas / – adora, danada – / aquelas de capacete florido / projéteis em arco / de pés queimados de pólvora /
mais uma rodada de colonizados vinhos marcianos / Lila enluarada
fraternidades urbanas / por entretenimentos aglutinadas /
apostam / na rinha das balas humanas / empolgados / ensimesmados e parentes
empolgados / riem até a entortadura / as efemérides que se lançam / e caem, rolam, fraturam, morrem angulosas
o silêncio não tem significado / incompreensível / sucedem-se os candidatos / encenam coragem / gesticulam epílogos / paródias-infantiloides-danças / recitações encorajantes
e gritos agudos / vitórias precipitadas / anedotas de quedas e fraturas expostas
hilárias /
Lila ri sim / de boca aberta silenciosa / de fleuma bege
Lila fica vermelha / ante casais-bala que se disparam abraçados / acompanhados por teclados e vulcões sonoros / tanques de refrigerantes eruptivos / românticos
estamos nus / honestos sobre nossa escuridão / conseguimos nos entender a natureza / espíritos desacoplados do corpo / mal sabe ela / em seus anos de Lila / que fantasmas empedernidos tentam transá-la enquanto anda;
a corrupção não dá termo para o sexo, não importa a dimensão /
talvez, daí, sua dificuldade com frutos: / já restaurou alguns dentes mordendo falsas frutas, / de adorno
minha mediunidade tá meio falha, malhada de imaginário, / mas consigo enxergar a tempo / não habita espírito algum em Lila: / carne programada
borrifa ela / um feromônio semiótico / dos seios forte e maravilhoso
meu cérebro a vê se encolher num vaga-lume,
sou transpulverizado num pedaço de noite, pra ser brilhado / e, quando regresso do imaginário breve, percebo o ardil: / meu amor por pirilampos e noites enluaradas foi encontrado / contei a alguém ou foi alguma foto por mim compartilhada? / memórias afetivas são infos das mais valorizadas / clap clap clap Lila, bela jogada
os canhões não param de tossir / não sei se sou namorável segundo seus algoritmos / ela é autolimpante? / do que é feita? / imitações perfeitas também imitam falhas / por isso as pequenas sutilezas gentis / a Afrodite acessível
afasto-me ébrio, desconstruindo os efeitos bioquímicos
quando uma vaca à paisana sobressalta / sobre duas patas / oferta calda de chocolate
alpino de suas tetas / fala alto, eloquente, do enriquecimento com ferro / alguns já se grudam e mamam breve até cessar / assistem, logo após, satisfeitos,
a coisa novamente se envaquear
peço arrego / vou-me embora / passo o portal de seguranças-armários / preciso de um tempo pra cambalear longe
de seus óculos escuros