Dois poemas de Isabela Benassi
Isabela Benassi nasceu em São Paulo, no extremo sul da cidade. É formada em Letras e atualmente estuda poesia portuguesa de autoria feminina. Também se interessa por estudos de gênero, artes plásticas e performance.
***
“Mándame siempre palabras de larga permanencia.”
– f. hernández
o corpo nos distingue
mas o que nos divide
são palavras de larga permanência.
é isso,
larga permanência
e penetração.
na busca permanente
por cores divididas
pelo reflexo rápido
e lento de um espelho
um poema vislumbra
refletir cores puras
e velocidades rápidas,
mas sabe-se lá
o que é uma cor pura
penetrando um corpo
em alta velocidade.
*
cresce infância
Ato I –
ouço palavras homens
diante da velhice espessa
de um sujeito
colocado sob o chão de saturno
e entre instantes de vida
inacabados.
suas palavras caem
no chão póstumo da tempestade
que apesar de úmido
ainda reserva
aquele único ponto seco
logo embaixo
enterrado.
ou:
como ter algo colado aos olhos
mas tão distante da superfície.
e aparece juventude
Ato II –
Vem cá,
vem ver essa foto.
Sou eu, a vó e as tias
na frente do terreno de casa.
A gente tinha acabado de subir esse muro.
Eu me lembro do cheiro da garoa caída
no barro, que logo em seguida assentou toda a poeira
que tinha ali.
Era só pó e barro que se tinha por lá.
Sua vó trazia água e a gente demorava
incontáveis horas pra separar o que restava de água
o que restava de lodo.
Quase sempre restava lodo.
Eu falei pra ela,
se você tirar essa foto esse muro vai ficar aqui pra sempre,
esse barro vai ficar pra sempre na gente.
Olha como tem
barro até o pescoço das nossas canelinhas finas.
Essas cercas atrás
dividiam o nosso terreno do vizinho.
A gente dividia o chão em duas partes
em secas
e barro não habitável.
A gente trocava a cerca de lugar
quando os espaços secos aumentavam
mas a nossa parte continuava sempre tão pequena.
A gente dormia tudo junto num cômodo só
e sua vó esperava todo mundo dormir
pra então se deitar.
Antes de dormir ela falava
não pensa no diabo
pra ele não entrar nos seus sonhos
e eu pensava nele e ele já estava em mim
——————– pesando como um corpo cheio
——————– de sono e infantil a tiracolo
——————– vulnerável até a cama
Eu tinha raiva de todo aquele barro, de ter que trocar
as coisas de lugar durante as chuvas
e daquela sujeira intermitente
que apodrecia.
O barro apodreceu o fundo de casa um dia
e um monte de moscas se criaram debaixo do chão.
Onde já se viu mosca sair da terra Por que um bicho com asas
ficaria embaixo da terra
As moscas grudavam nas roupas
comiam nossa comida
os animais as plantas
bebiam nossa água e nos dias quentes
elas se juntavam tão uniformemente
que quase não se via chão.
Até que sua vó queimou a terra e disse que o diabo não pisava mais lá.
A gente comeu doce de abóbora por dias
mas eu odiava muito e fingia que comia
e depois jogava no chão com o barro
pra misturar o que sobrava daquilo
e tentar se desfazer logo.
As moscas voltaram numa aglutinação perfeita no meio do quintal
e sua vó enfureceu tanto que tirou com mãos e força
toda a terra que estava ali.
E ela achou os doces no meio do barro.
E ela me bateu
com espadas de são jorge
(enquanto chorava muito).
Sua vó pegou uma faca e fincou meus pés
na terra como uma estaca da cerca
que a gente trocava de lugar
nos dias quentes.
Você só vai sair daí quando chover.
——————– furou minha canela
Você não pode sujar o que é seu corpo.
——————– e meu sangue caiu no barro
—————————————- —————— com raiva eu desejei
—————————————- a morte pela primeira vez
E mesmo se despistando tudo no meio do caminho
tinha chuva todos os dias
mas naquele dia não
——————– nem no outro
——————– nem no outro
—————————- nem no outro
e eu fiquei lá
olhando pela janela
sua vó cozinhando a comida
que estava sempre quente e úmida recém tirada da terra.
ou ainda:
dentro de um bar
toca
você
perto dos meus olhos
e tão longe do meu coração
você vai perceber
a dor.
BARBOZAS TORRE
“mas sabe-se lá
o que é uma cor pura
penetrando um corpo
em alta velocidade.”
carai, véi.