Dois poemas de Isabela Dutra
Isabela Dutra é artista visual, arquiteta, fotógrafa e integrante do Clube de Colagem de Brasília. Desenvolve produções autorais e pesquisas relacionadas ao espaço e lugar, e a poéticas da paisagem (urbana), tendo a fotografia e colagem como suporte. Escreve poemas e se interessa por poesia falada.
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a gente esquece que também é água
a gente esquece que também é água
que o corpo é água que corre no mundo
que escorre e atravessa encruzilhadas
que faz curvas pra uma nova estrada
a gente esquece que também é água
e que se é água também é rio
seca
espera a chuva
reza por uma gota de chuva
por um gota de lágrima
que quando cai
escorre pelo relevo do rosto
e marcando caminho
leva o sal a boca
a gente esquece que também é água
e esquece também que é mar
cheio de rios e de outros corpos
que mergulham e se arriscam em nós
mesmo em dias de ondas altas
a gente esquece que também é água
e se é água também é calmaria
dia de barco atracado no porto
traçando a nova viagem
tendo em vista aonde se quer chegar
e fora da vista o que está entre
entre o início e o fim, entre ser rio e ser mar
entre o que se quer ser e o que se é
água
*
outra vez
logo quando eu pensava que já tinha certeza sobre mim
tive que ser outra
tive que me fazer outra para ter novos olhos
tenho aprendido a ver o outro como novo
quem quer que seja esse outro
de quem quer que sejam esses outros olhos que passam pelos meus
e me arrastam para outros lugares
e foi assim que te olhei com jeito de quem te olhava pela primeira vez
porque pela primeira vez eu me olhava como nenhuma outra vez havia me olhado
tenho amanhecido sendo outra
e em um desses amanheceres passei a ter outra pele
ser outra me deu oportunidade de me despir de meu nome
e de todas as palavras que já não cabiam em minha boca
agora
dentro da boca só tenho guardado versos ainda não ditos
passei a inaugurar novas palavras e a sentir novos gostos
eu já não enchia a boca para falar de amor
deixei o amor para a boca do estômago
eu tinha mais urgência em ser outra
em me sentir como outra
por vezes achei que queria ser outra para não possuir mais o passado
mas sendo outra tenho percebido que não
não é só isso
eu precisava da morte para encontrar dentro de mim a vida
eu precisava ser outra nesse tempo agora
eu já não mais podia te carregar comigo
pois você também já era outra
eu precisava tomar fôlego para me respirar inteira
e o que me fazia inteira era essa profunda vontade de ser outra