Dois poemas de Pablo Rezende
Pablo Rezende é filho de dona Ilda, poeta e professor de Língua Portuguesa, Literatura e Redação da Rede Pública do Estado do Mato Grosso. É graduado em Letras – Português/Inglês pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e Mestrando em Estudos Literários pela Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT). É autor do livro O dever e o haver, publicado pela Literata, em 2011. Têm poemas publicados em várias antologias poéticas nacionais e internacionais.
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A casa na rua da Saudade
Ontem me dei conta da história que me cerca:
Ao longo de minha vida ainda jovem
Passei por muitas casas
Muitas casas passaram, no entanto
Uma permanece morando em mim.
Eu nasci na rua do Carmo,
onde conheci meu pai.
Passei minha infância na rua Pio XII,
onde aprendi a andar de bicicleta.
Passei minha adolescência na rua Levindo Alves de Souza,
onde descobri meu primeiro amor.
Tudo passou,
Meu pai foi embora
A bicicleta quebrou
O coração se partiu.
Uma casa restou
Na rua Silviano Brandão, número 893,
Coincidentemente
São os mesmos números das mulheres que amei,
Dos sonhos que carrego
E dos amigos que terei.
Foi nesta casa que minha avó criou os 5 filhos
Três homens, uma mulher e minha Mãe,
Lavando roupa para fora
Colocando amor e comida para dentro.
Foi nesta casa que minha Mãe
Ainda jovem
Amamentou o primeiro filho,
Gerou o segundo
E perdeu o terceiro.
Foi nesta casa que meu irmão irrompeu pra Vida
Foi trabalhar aos 10 anos
Foi vender picolés
Para comprar leite para o irmão que acabara de nascer
Foi nesta casa que minha mãe
Colheu laranjas
Plantou feijões
Carpiu quintais
Lavou túmulos
E como uma última escolha voltou a sonhar
Foi nesta casa que minha Mãe
Plantou uma Primavera há alguns anos.
A partir deste dia, a casa de minha avó se tornou um mundo coberto de flores
A casa mais florida de todas as saudades possíveis
Onde tudo floresce em fogo vivo
Onde todo dia é primavera, onde todo dia é saudade
Nesta casa, nesta, casa.
Foi nesta casa que despedi de meu Tio
Foi nesta casa que escrevi meu primeiro poema
Foi nesta casa que senti todas as saudades possíveis
Foi nesta casa que reconheci os meus primeiros amigos
Foi nesta casa que curei a Última ferida
Foi nesta casa que sonhei o Primeiro Sonho
Foi nesta casa,
nesta casa,
casa.
.
Ainda me lembro, como se fosse hoje, como será amanhã.
Do muro baixo, do portão pequeno
Acompanhei enterros
Conheci a multidão
Perpetuei a memória
Vivi as mil noites de um só dia.
Foi logo ali, perto do cemitério municipal
Numa casa amarela, como o sol de cada instante
Que pessoas viveram
Que pessoas sonharam
Que pessoas lutaram.
Foi logo ali, perto da creche Padre Lourenço
Numa casa azul, como o Mar Aberto de cada noite
Que pessoas se olharam
Que pessoas se amaram
Que pessoas se despediram.
Foi logo ali, na rua da Saudade
Que me apaixonei por todas as 893 mulheres
Que devia amar
Que sonhei todos os 893 sonhos
Que devia sonhar.
Que reconheci todos os 893 amigos
Que devia reconhecer.
Foi ali, logo ali
Na casa azul, na casa amarela
Na casa florida
Na casa da rua da Saudade
Que adormeci, profundamente
*
Os homens que amaram minha Mãe
A Ilda Maria de Rezende
Minha Mãe sempre soube que a existência era vento breve
Muito mais breve que os amores desta vida
Que embora passem, são eternos no instante que cabem
Eternos em uma mente repleta de lembranças
Repleta de dias, repleta de amores.
Minha Mãe amou Raimundo
No primeiro instante que o viu
Raimundo tinha a força das horas calmas
Minha Mãe tinha a intensidade das horas tempestuosas
E era exatamente no encontro destas forças
Que ambos se amaram intensamente
Um deu ao outro
A novidade de amar sem amarras.
Minha Mãe sempre acreditou na duração das coisas
Embora todas essas coisas não estivessem
Dentro de uma validade honesta, limpa e clara.
Minha Mãe amou Ernesto
Mas não foi no primeiro instante
Foi no segundo, foi no terceiro, foi no quarto
Foi até o último segundo
Quando ainda se bastavam
Ernesto era um homem de raiz, de olhos certos
Foram um ao outro como uma manhã de primavera
Fresca, limpa, breve e florida.
Minha Mãe sempre transbordou a forma das coisas
Minha Mãe sempre ultrapassou o limite, o significado do mundo
Minha Mãe sempre escorreu pros cantos
Minha Mãe sempre correu em zig-zag
Minha Mãe sempre explodiu em linha reta.
Minha Mãe amou José
Quando não deveria amar
José era um homem duvidoso, embora sempre fosse exato
José tinha nos olhos todos os poemas
Toda a substância lírica que ao contato com o corpo
Seria uma tragédia
Dessas que se anunciam, dessas que se lastimam
Dessas que o tempo faz questão de contar quotidianamente
Mesmo assim, minha Mãe amou José
Intensamente, irracionalmente, comumente
Como se fosse o primeiro, como se fosse o segundo, como se fosse o terceiro
Como se fosse o único
Como se fosse todos os homens do mundo
Como se fosse meu pai.
Minha Mãe sempre se feriu em todos os amores
As coisas não são como queremos que sejam
No entanto, era no próximo amor que ela se curava
Era no instante sublime, no encontro dos corpos
No vórtice gestual
Que todas as chagas desapareciam
Minha Mãe se regenerava, era outra mulher
Minha Mãe estava pronta, novamente
Era outro amor
Para dar outros sentidos aos dias que viriam.
Minha Mãe amou Ribamar
Sem freios ela se jogou ao Mar
(Embora não soubesse nadar
Embora não soubesse a profundidade
Embora não soubesse voltar
Ribamar tinha o gesto dos sonhos mais humildes
Brilhava sobre si a imensidão inexorável da memória
Ribamar tinha amor demais
Quando ela já amava outros homens
Era amor antigo
Desses que não amarelam, permanecem.)
Minha Mãe se entregou em estado líquido
Minha Mãe amou daquela vez como se fosse a última
Minha Mãe foi poesia
Se uniu ao azul marítimo
Da cor dos sonhos mais comuns.
Minha Mãe sempre acreditou na pontualidade
No caminho natural das coisas
Passo por passo
Hoje se ama, amanhã não se ama
E o amanhã não se sabe.
Nada como o tempo para lembrar
Que a vida poderia não ser, mas foi
Foi nos cantos, em zig-zag, transbordando, explodindo
Que minha Mãe passou por essa vida e viveu
Breve como deveria, como se propôs
Eterna com uma mente repleta de lembranças
Repleta de dias, repleta de amores.