Dois poemas de Thiago Medeiros
Thiago Medeiros é pernambucano de Caruaru. Escritor e agitador cultural. Idealizador do Encontro Literário Letras Em Barro e da Oficina Levante Literário. Publicou o livro de contos Claro É O Mundo À Minha Volta, pela Editora Patuá. Organiza, junto ao poeta Andri Carvão, o Simpósio de Poetas Bêbadxs. Publicou em revistas como a Mallarmargens, Gueto, Bibliofilia Cotidiana, Ruído Manifesto, Variações e Xapuri. Escreve para não esquecer de si mesmo.
***
mil suturas cirúrgicas
cintura acima e até a
linha imaginária que
separa hemisférios
no que dizem ser a
cabeça
ignoro as pernas
por não acreditar
em nada que me
tire do lugar
–
culto aos domingos
selinhos lisérgicos
beijo na boca e na
pálpebra
[não me faça
fechar os olhos
se por hoje te
chamar de qualquer
coisa que nos lembre
amor]
–
todas as costuras
velhas máquinas
de pedal
fazem esquecer
que também sou
primeira pessoa
é
que
por
vezes
creio ter
todas as
unhas do
mundo
coroando
o que pode
ser minha
cabeça
há sérios
vestígios
de carne
minha
sob as
unhas
do mundo
e não sei
de quem
era a pele
que me
suturaram
dois mil
homens
cinco mil
mulheres
das crianças
que me moldaram
não conto mais
ainda
assim
mil suturas
cirúrgicas
não me completam
em primeira pessoa
psiquiatras dizem
despersonalização
sábio homens da lei
já me chamaram por
legião
rabinos dizem
não há nada
mais completo
que um coração
partido
e
minha filha me faz
acreditar
às vezes
sou porto
–
é numa linha
rubra que
gostaria que
ela me costurasse
às memórias
–
então me agarro
aos restos de fé
que por aqui
sobraram
e lembro que
neste retorno
ao útero das
minhas crenças
a primeira
oração que
aprendi
foi uma música
cantada por uma
mulher
pena que não
recordo letra
alguma
estava num
pedaço de
pele
arrancado
por uma
das unhas
do mundo
e
suturaram
em troca
uma ausência
tão leve quanto
arpões baleeiros
suspensos numa
fotografia em
tons de sépia
*
Para Maria Fernanda Elias Maglio,
que me mostrou a palavra engastalhar
Para Melina,
que me recordou que o céu também tem cor de flores
Para Laís Reis,
que me juntou tudo isso e jamais poderei agradecer
minha filha
me acordou
para dizer
olha
pai
o céu
está rosa
sou um homem
de polegares
engastalhados
e de
neurônios
frágeis
queria dizer
de novo
tenho mais
que poros
solúveis
também
tenho a cabeça
tão desgastada
tenho a cabeça
tão quebradiça
tenho a cabeça
tão dissolvida
por tantas águas
que me passaram
e
é você que
me lembra
o céu
nem sempre
tem cor de
oceano
por vezes
com os olhos
adormecidos
do mundo
o céu
tem cor
das pontas
de um jasmim
quisera eu cheirá-lo
minha filha
da mesma maneira
que gostaria de cheirar
segundos antes de dormir
teus cabelos que eu mesmo
lavei
já tive vinte
e três anos
já senti a eternidade
em cada mover
das mãos
já soube o que é
não temer o mundo
nem tempo
nem gentes
já soube
rasgar
calendários
inteiros
já soube
desconhecer
acalantos
e
desaprendi tudo isso
em cada fio branco
que no rosto me
surgia
para conhecer sobre
perdas
para conhecer sobre
quebras
para conhecer sobre
ausências
porque nada completa
saudade, minha filha
nem meus vinte e
três anos
nem mesmo um
céu rosa
nem mesmo os
três dias na
semana que
te tenho comigo
e
que no final deles
renovamos
despedidas