Dois poemas e dois contos de Oluwa Seyi Salles Bento
Oluwa Seyi Salles Bento nasceu em 1993, na cidade de São Paulo. É aluna de mestrado na Universidade de São Paulo e formou-se em Letras – português pela mesma instituição, em 2016. Mulher negra, geminiana, filha de Oxum, leitora e pesquisadora daquilo que ama, escreve desde os 13 anos. Vive a prosa, mas sonha a poesia.
***
I
Partida.
Dilacerada.
Faltando pedaço.
Cada morte com a minha cor
É a minha morte também
Paga em prestações.
Com juros impraticáveis
Injustos
Prazo a perder de vista.
Eu prometi pro Emicida que não morreria este ano
Mas eu morro desde África
Antes da minha primeira mais velha
Aportar nessa terra
Que foi arada pelas nossas mãos
E adubada
Pelo nosso sangue
Eu morro antes do útero genitor
Tocado por Oxum
Cabaça de Ìyá mi
Eu venho morrendo todo dia
E devagar
A cada correr de olhos pelas notícias
A cada grito de tristeza e ódio
Engasgados
Porque eu não posso mais gritar
Desaprendi, do grito, tudo
Mortos não sabem gritar:
E eu só tenho sabido morrer.
Somos todos quem, amanhã?
*
II
Nunca baobás, mas pequenos
Nunca cais, mas deriva
Nunca Orixás, mas morenos
Sempre ais, jamais esquiva
Sempre voraz, jamais sereno
Sempre incapaz, jamais herói
Sempre quiçá, jamais pleno
Nunca faz, mas destrói
Nunca mais, mas menos
Nunca eficaz, mas declive
Nunca a paz, mas acenos
Sempre jaz, jamais revive
Sempre obsceno, veneno
Sempre errado, enterrado
Sempre extremo, morrendo
Maculado, mas nunca mais silenciado.
(Sobre)vivemos
*
Litterae me usurpant
Houve um dia em que o caos transbordou-se dela. Nem os fios de cabelo repetidamente escovados, nem os gizes de cera organizados em degradê, nem as oito e religiosas xícaras de chá que tomava ao longo do dia puderam represar a força de águas súbitas e traiçoeiras. Neste dia, a paz friamente projetada e experienciada por ela ruiu frente ao inesperado.
Ela era avessa às manifestações de dons, pois acreditava que a arte era fruto de aprendizagem e técnica. Profunda desconhecedora da Inspiração, agia como se a literatura a pertencesse, mas descobriu, não tão mais tarde, que as letras são forças da natureza e, sendo assim, jamais podem ser domesticadas.
É usual que se pense na literatura como manipulável, como externalização de pensamentos de alguém. Na realidade, o que rege o escritor é como uma entidade maior, que gosta de se passar produto de sua escrita. O homem nada mais é que um instrumento e mente quando diz que escreve um texto: um texto é escrito por meio dele, somente.
Naquele dia em que a poesia nasceu, ela não tinha encaixado a escrita entre seus afazeres, mas, mesmo assim, se viu ponderando rimas, a contragosto. Tentou limpar a mente, praticar ioga, cozinhar e até dormir. Não era de seu feitio deixar qualquer exterioridade orientar seu cérebro, desequilibrar seu ímpeto, porém, naquele dia, seu corpo não parecia completamente amestrado como de praxe. A mão esquerda tamborilava insistente sobre os objetos, o estômago não queria nem água e os olhos piscavam pouquíssimo: aquilo tudo lhe soava como um motim. Uma exigência do corpo pela escrita.
Resistir não parecia-lhe possível. Como fazê-lo? O caminho era dar vazão àquela tormenta que ela sentia se formando dentro de si. Com medo e vencida, ela arranjou papéis e uma caneta. Sentou-se à mesa da cozinha, onde nunca antes escrevera e, sem poder mais conter, foi arrebatada pela literatura.
Escreveu, em 20 minutos, por todas as frentes e todos os versos de todos os papéis que tinha encontrado. Por vezes de olhos fechados, escreveu como quem existia. Escreveu como quem dava à luz.
O texto híbrido, meio diário meio poema, nascia-lhe. Antes da mão que do ventre, sua prole em verso fora posta no mundo. O corpo que antes dava sinais, contrações não-uterinas, aos poucos encontrava paz. Agora podia fazer ioga ou dormir, se assim desejasse. A doce obrigação já havia sido concluída.
A moça, derrotada, mal lera o que havia escrito. Não se sentia autora do texto, mas sentia-se novamente tranquila, recém exorcizado pela camomila, velha amiga, ainda que não sentisse qualquer gosto ou cheiro de chá. Experienciava uma paz mais profunda, quase um cansaço. Quando notou, sorria.
Organizando os papéis ainda quentes, olhando-os com firmeza, como quem fita um felino pouco amigável, correu os olhos pelas linhas, sem lê-las, só examinando a caligrafia, os contornos, as rasuras.
No fim da última página, duas linhas sublinhadas, iniciadas por uma abreviatura e finalizadas por uma assinatura, ambas latinas, lhe chamaram a atenção. Não faziam parte do texto, eram um aviso à escritora: “P.S.: Não é necessário reservar espaço para mim em sua agenda. Eu volto quando for preciso. Litterae“.
Por fim, a moça dobrou os papéis e os guardou no armário da cozinha mesmo, junto às caixas de chá. Parecia-lhe sensato ter o que acalma bem perto daquilo que desassosega.
*
Reminiscência
O céu estava especialmente limpo naquele dia. A temperatura amena e o vento suave convidavam a um passeio matutino. Kairu olhava o movimento da rua pela janela e, ainda que tentasse negar, sentia uma grande vontade de caminhar até a praça que ficava no fim da rua onde morava. Hesitou. Andou em círculos dentro de seu quarto e por fim sentou-se à escrivaninha.
Destacou uma folha do bloco de notas e escreveu, numa caligrafia leve e fluida, um bilhete para sua mãe: “Fui à praça. Volto logo. Beijo, Kairu”.
Levantou-se, quase ansioso, deixou o bilhete sobre a mesa da cozinha e saiu de casa, como há tantas semanas não o fazia. Desceu as escadas e absolutamente tudo ali lhe parecia novo. Como pode? Kairu nasceu naquela casa, brincou a infância inteira naquela rua e, agora, depois de tantos anos, nada se apresentava conhecido. Não era, em nenhum momento, hostil, mas não era também de todo amigável. Era pisar em solo estrangeiro; era não saber o que esperar.
Os raios solares, a cor da grama, o sorriso das crianças eram os de sempre: inacreditavelmente novata era a percepção de Kairu sobre aquelas simplicidades, semi-imperceptíveis. Andou sentindo os cheiros da rua, tentando encontrar algo reconhecível, um rosto familiar, mas ele era ali um anônimo de si mesmo.
Fazia quase um mês que tinha recebido alta depois daquele acidente que foi noticiado em vários telejornais, mas esta era a primeira vez que Kairu permitia-se sair de casa e conhecer sua própria vida. Depois de dias desacordado, em coma, a primeira imagem da qual se lembra, ao acordar, é de uma face feminina, banhada em lágrimas felizes e tristes ao mesmo tempo. Descobriu que aquela era sua mãe e que ela chorava porque assistia seu único filho renascer de uma quase morte. Kairu acordou, mas perdeu em algum lugar de seu longo sono todas as memórias de sua vida: não sabia seu nome, não sabia quem era; se fosse um verbo, seria “saber”, porém inconjugável.
Chegando à praça, Kairu sentou-se em um banco e ficou em silêncio, olhando ansioso para todos os lados. Mal se assustou quando ouviu uma voz doce dizer seu nome: era como se estivesse esperando por ela. Virou-se devagar na direção de onde vinha a voz e pela primeira vez não achou um rosto de todo estrangeiro.
– Eu conheço esses olhos bonitos – disse Kairu, quase automaticamente.
– Não é a primeira vez que você diz isso – respondeu a moça, sorrindo – E o resto, você não conhece, não é? – perguntou.
– Me desculpe… Eu sofri um acidente e não me le… – argumentava ele, quando foi interrompido pela moça.
– Eu sei, Kairu. Eu sei de tudo. Eu estava lá. Sei que você perdeu a memória naquele acidente de carro na Marginal. Meu nome é Zuhri e eu estava dirigindo. Eu que causei sua amnésia – disse a moça, sem respirar.
Kairu não disse mais nada porque não foi capaz de pensar em nada. Levantou-se lentamente e saiu sem se despedir. Não ficou magoado, apenas se surpreendeu. Não encontrou dentro de si nenhuma palavra que pudesse expressar aquela surpresa.
De súbito parou, olhou para a praça à procura de Zuhri e perguntou a si mesmo, enquanto batia de leve na própria testa:
– Tudo bem em se esquecer do seu nome, Kairu, mas como você foi capaz de se esquecer de alguém com olhos tão bonitos? – disse ele, sorrindo, julgando quase imperdoável um esquecimento tão grave assim.