Dois poemas e duas crônicas de Michele Alves
Michele Alves tem 25 anos e mora na periferia de São Paulo. Estuda Letras na Universidade Federal de São Paulo e já lançou dois zines independentes, A Fuga, contendo um conto de suspense, e Silêncios, de crônicas e colagens. A escrita sempre foi uma parte importante e recorrente de sua vida, porém, até os 22 anos, estudava Geografia, até que decidiu largar para se dedicar à literatura e à escrita como profissão. A autora aborda temas como transtornos mentais, política, feminismo, romance… Seus contos, em sua maioria, são de terror ou suspense. Em 2018, a autora começou também a fazer colagens manuais e digitais como forma de ilustrar suas crônicas e poemas, que publica em sua conta no instagram, sob o codinome Garota Nicotina, nome que também é dado para seu tumblr e médium, onde ela também publica alguns de seus textos. Atualmente, está escrevendo seu primeiro romance.
***
Raízes
Minha mãe veio lá da Bahia, do sertão
interior do Estado, quase divisa com Minas Gerais
entre ela e suas irmãs, existe um gosto pelo café preto
forte. café preto e chiringas, (é um bolinho da região.)
a gente conhece como polvilho, mas ninguém fala esse nome.
você joga o bolinho dentro do café, até amolecer
depois espeta-o com a faca e o leva a boca.
em seguida, um gole de café.
elas encostam no balcão da cozinha
e quase todas levam na pele os raios impiedosos do Sol.
café forte com chiringa me lembra Caculé
café forte me lembra a terra laranja, tão forte e saturada
os coqueiros solitários, e os bois levemente magros
a seca que engole o rio, revela as areias
brancas.
dunas macias, que colorem ainda mais a roça.
o café forte lembra o Sol a pino
e as ruas lapidadas em milhares de paralelepípedos
minha tia carrega as rugas intensas da idade entre os olhos
os cabelos brancos e o olhar gentil,
caminha quase de madrugada até a feira:
queijo fresco, chiringa e feijão fradinho
linguiça apimentada, carne seca e doce de leite;
cafezinho, até o almoço ficar pronto
o Sol testemunha a força de mulheres
algumas insistiram em permanecer por lá.
mulheres que caminharam quilômetros para pegar água
cuidaram dos filhos, enfrentaram seus maridos.
café forte me lembra de um olhar gentil que persiste
o pé rachado e a pele manchada
as gargalhadas que vem da cozinha, inundam a casa
Caculé parece perdida no mapa, quem não veio de lá
nunca ouviu falar.
da casa da minha tia, no alto do morro,
toda a roça parece jamais ter fim
laranja é a cor, que pinta seu mundo, laranja é a cor de sua imensidão.
laranja como o tom da pele de todas, tatuada pelo Sol, como sua história
colorindo de laranja a memória
de quem conseguiu aprender com a roça
a coragem de prosseguir nesta seca.
a maioria veio pra São Paulo,
o acinzentado asfalto, é tão quente como o barro seco
a cidade grande tem suas secas também
as cores não disfarçam a crueldade,
mas não assassina a resiliência
da pele encascorada da seca.
o café forte com chiringa no fim da tarde
me faz lembrar de Caculé, me faz pensar em minha história
em minha mãe, e minhas tias forjadas com resiliência
no alaranjado da roça.
*
Pó das estrelas
Passei esses dias na cama, e você já sabe o motivo;
fumei uns dois maços por dia, e
bebi um vinho velho que estava na geladeira
comi mal, não bebi água
vi vídeos inúteis no youtube e ignorei ligações
no vácuo de mim mesma,
no vazio gigantesco de meu universo,
retornei à gênese dos planetas
sendo compostos pelo pó das estrelas.
Não há luz emanando de mim,
apenas um resquício da radiação
de uma explosão cósmica, vinda direto
do universo.
Deitada na cama,
perdendo toda noção de gravidade em mim
deixando os pensamentos flutuarem para longe:
eu sou pó das estrelas, e existe um buraco negro, em mim.
Sugando toda luz ao seu redor, a leve luz que viaja pelo espaço
e denso, destrói tudo que encontra, sendo visível justamente por não ser,
sendo incrivelmente belo a distância
a incrível trágica beleza, de tudo que simboliza um fim.
Me desfiz em poesia.
Me refaço em antimatéria.
Me refaço em explosões atômicas
em cada esquina.
Não nasci para rimar.
Nessa hora, o cérebro muda sua química
e abaixa a taxa de serotonina,
vitamina D e endorfina.
Brutalmente, o cérebro se contorce
feito um bicho vivo na panela fervente.
e minha pele é uma roupa apertada
que eu me vejo obrigada a usar,
desconfortável demais para me mover,
justa demais para respirar.
De uma explosão cósmica,
eu sou pó das estrelas.
Me refaço agora, apenas para desfazer no final,
explodir dentro de mim mesma,
uma pequena prova viva da teoria do Caos:
um sistema dinâmico e complexo
instável na evolução temporal.
Tudo se desfaz…
Minhas inseguranças se entalam na garganta,
enquanto grito, tentando recuperar de volta minha autoestima
essa coisa de amar-se por completo é tão difícil
e agora qualquer suspiro é bem vindo.
Quero recuperar o fôlego,
o hoje é só mais uma volta que a Terra deu sem si mesma
quero fechar os olhos, descansar as retinas.
Um último suspiro antes da colisão final
na matéria mais densa, localizada em meu centro
nenhum som se propaga no vácuo,
de encontro ao meu buraco negro,
eu flutuo em meu espaço.
*
Aos olhos de menina, tudo é invariavelmente efêmero
Ao que tudo indica, meus olhos de menina se perderam lá no começo da adolescência. Junto com as roupas encardidas de tanto me sujar na rua.
Olhos de menina que digo é essa inocência que o mundo simplesmente não nos permite ter. A nós, mulheres, quer dizer. Uma inocência… Eu quero dizer, uma ausência da noção de que tudo pode acontecer comigo. A noção de vulnerabilidade; e vulnerabilidade é uma palavra grande demais que a gente só aprende quando precisa de fato. Olhos de menina que se esvaem com o tempo, feito letras impressas em um cartão postal, onde a tinta padece ao passar dos anos, onde a inocência padece, junto a pressão dos dias. Eu quero dizer, olhos de menina!
Roupas encardidas no varal, cujas estampas são aqueles desenhos que a gente assistia de manhã, sujas das brincadeiras lá fora são esquecidas no quintal. O mundo nos apresenta com um novo padrão comportamental, padrão quase impossível de seguir, mas tentamos porque a tal vulnerabilidade segue em nosso encalço como um carrasco prestes a levantar a alavanca da guilhotina. Os olhos de menina seguem assassinados pelo carrasco e aparecem nos jornais. Algumas vezes tão sutil, que a gente se surpreende quando nota isso numa conversa com as amigas da faculdade, em uma roda enquanto partilha um beck. Às vezes, a gente nota cedo. Aí quer dizer que a vulnerabilidade já nos alcançou. Algumas vezes até aparecemos nos jornais, onde a perda desse olhar estampa a capa principal. Não dura muito, nunca dura muito. A dor é particularmente nossa, apenas nossa.
Tão nossa quanto nossas roupas de brincar na rua. Tão nossa quanto a pele que veste-nos como um manto sagrado. Sagrado-profano? Melhor assim, soa mais correto. A dor é ainda nossa, não dá pra passar pra frente. Tem algo meio encardido em nosso emocional, das sujeiras do mundo lá fora. Até soa poético, mas é deveras triste. Olhos de menina que se foram talvez na adolescência, quando a gente aprende a palavra consentimento, consentimento porque aprende o que é assédio.
As roupas da infância todas encardidas no varal. A bermuda rasgada, camiseta larga e o tênis sujo, o chinelo estourado. Quarando no tempo, levando embora bons momentos arrancados de nós. Arrancados, a gente não cresce feito os outros. Os outros, sabe? Eles.
Quarando no varal, as roupas que nunca mais irei usar. Eu me olhando na infância, pensando na dor depositada ao longo dos anos. Vulnerabilidade e outras palavras muito feias, adicionadas no vocabulário de forma empírica. A gente vive mil vidas em uma só, a gente vive meia infância quando deveria ter uma inteira. Nos olhos de menina… a matemática nunca bate.
A nossa dor é a única coisa que possuímos, quando nem o corpo é da gente mais. A gente cultiva essa dor, e a nutre, em algum canteiro do cérebro, se esforçando o máximo para não florir em ódio. Depois a gente aprende que um pouco de ódio é necessário, depois que as roupas estão no varal, qualquer inocência pode atrapalhar.
É por isso que usamos nossas chaves de soco inglês tarde da noite, entende?
É por isso que na bolsa tem um spray de pimenta. É por isso que não confiamos nem nos homens de nossa família. Alguma dor cultivada aqui dentro, plantada como erva daninha, no lugar de uma flor nativa da infância.
A infância encardida quarando no varal. Os olhos perdem-se no cotidiano, a tal da inocência. Talvez tenha sido espantada, quando um homem buzina para você, aos onze anos de idade. Quero dizer… toda mulher tem algum trauma desses dentro de si.
Olhos de menina… Jamais poderiam lidar com isso. A gente encascora o espírito, que é para não chorar muito ao abrir os jornais, ao ver as notícias. Eu quero dizer… É dor demais. Parece que é a única coisa que é nossa por direito. O resto a gente tem que tomar.
O que eu quero dizer mesmo? Foram-nos arrancados esses olhos de menina, talvez por isso, esse sentimento de luta entre em seu lugar.
*
Do ponto a ao ponto b
O busão estava lotado, como sempre. Consegui entrar depois de muito esforço e me enfiar entre uma senhora e um homem enorme. Segurei a mochila com a mão esquerda e usei a direita para me segurar. Não era um dia quente, mas lá dentro parecia o inferno. Pessoas com aquela cara de desgosto profundo e um mau humor que é a única coisa que nos conecta. Tirando o fato de que nosso cotidiano está cheio dessas presepadas. O ônibus é lotado, tão lotado que não tem como mover o pé do lugar.
O motorista ainda sim, faz questão de parar em mais alguns pontos, e mais pessoas se espremem rumo a um sofrimento coletivo. Nessa hora, algumas pessoas começam a reclamar, “porque não cabe mais, motô”. Eu já estava de saco cheio. Ainda mais que uma senhora a minha frente cheirava a miojo e tangerina, combinação tenebrosa. As ideias e vontades morrem em um busão lotado. As ideias e vontades, tornam-se aquelas baratas pequenininhas que andam pelo canto das janelas ao lado dos assentos. Minha vontade de sentar ao lado delas era tanta, que uma urgência de pagar cinco reais por dez minutos sentada, pareceu uma boa ideia.
Queria fumar um cigarro. Queria estar sentada, fumando um cigarro longe do cheiro de miojo. Longe da moça se escorando em mim a cada curva que o ônibus fazia. Pensei em comer um lanche quando chegasse em casa, um lanche e eu me sento para escrever mais um capítulo do livro. Livro parado há seis meses agora. Logo me perguntei: por quê não consigo terminar as coisas que me proponho? Dez minutos no ônibus e eu já concluía que eu era uma inútil.
Um busão lotado e a gente começa a odiar a si mesmo. Você procura na sua vida os caminhos que te levaram até aquele momento, até este lugar. Você poderia estar em seu próprio carro ou em um uber. O sofrimento seria o mesmo, mas pelo você estaria sentado. A raiva parece roncar com o motor, percorrendo ruas e avenidas, até parar em um coração meio cansado, enferrujado. Um cheiro metálico, vindo das valas da mente, meus olhos seguem firmes, parados na janela, procurando um suspiro na paisagem batida.
A criança no colo da mulher do assento preferencial começa a chorar alto, alto o suficiente para atravessar minha música tocando no fone de ouvido. Reviro os olhos, eu a invejo, queria berrar também. Daqui ela parece tão fofinha, uma pena que esteja sentindo esse cheiro estranho, emulsionado com o suor seco de um dia longo de trabalho de várias pessoas. Crianças têm a licença poética de berrar em uma situação claramente horrorosa. A gente é transportado feito bicho, mas daí até berrar com todos os pulmões, seria loucura. Acho que essas situações nos faz morrer aos poucos. Imagino que toda a indignação, ideia, criatividade, revolta, empolgação morre um pouco em um ônibus lotado. Essas pequenas situações que nos faz mastigar uma raiva maior que nós mesmos. O cotidiano nos engole, é verdade, mas antes mastiga um pouco, a gente tem sabor de tangerina, miojo e suor.
Alguém pisa no meu pé. Normalmente isso não seria problema, mas aqui, não dá vontade de assassinar alguém? Imagine, seres humanos não foram feitos para dividir um espaço tão pequeno com o outro. Uma bunda se esfrega com outra, um pé pisa em outro. Depois de meia hora, você apenas reza para que o ônibus capote em alguma avenida.
Eu sei que eu pensei, pensei e desejei fortemente que acontecesse. Talvez a criança se salvasse e só. O resto podia morrer e tudo bem. Olhe só para nós, todos acabados. Olheiras enormes, fodidos, cansados, a panturrilha latejando e uma dor de cabeça sútil que faz a gente querer se jogar na frente do primeiro carro.
Confesso que penso muito sobre morte em um ônibus assim, essa ansiedade de chegar em outro lugar logo, me faz pensar até em chegar na outra ponta da vida. Seu fim total. A situação é meio brutal, é uma tortura que a gente paga quatro reais para passar. E ainda é caro, se a gente sai vivo dela. Todo mundo com sua cara de desgosto, evitando o máximo qualquer contato visual, esperando que algo melhor esteja de braços abertos quando o nosso destino chegar.
Qualquer ideia morre em um ônibus lotado. Qualquer vontade, inspiração, alegria. A gente desce do ponto com cara de enterro. Enterro porque parte da gente virou aquelas baratinhas que vivem no canto das janelas. A gente nem se pergunta por quê não pode ter alguma coisa melhor que isto, talvez, a ideia comece a brotar, mas um busão aqui dentro atropele ela, precocemente.
Não dá pra exigir demais de quem mastiga tanta raiva todo dia. Só da gente não se matar no final da jornada, já é lucro.
Esse ar cheio de vírus e bactérias. Suor, miojo e tangerina. Se pensar bem, dá vontade de chorar, e as lágrimas cairiam na calvície de um homem de meia idade, sentado bem perto de mim. O cotidiano assassina a gente. Primeiro essas emoções que seriam algo incrível. Depois um pouco a nossa vontade de viver. No fim de uma sexta-feira, a gente só consegue ser trabalhador, e nada mais. Talvez a ideia seja essa mesma. Baratinhas pequenas nos cantos das janelas, vivendo nas engrenagens e se alimentando do resto. A revolta é amortecida pela fome e cansaço. As ideias são atropeladas pelo sono e a preocupação.
Pensando que deveria escrever, chego em casa e bato uma pratada de bolachas com requeijão e tomo um chá. Me jogo na cama e a escrita fica para outro dia, quando eu estiver menos cansada. Menos exausta, talvez, mais viva.