Dois poemas e um conto de Daniela Rezende
Daniela Rezende é escritora e arte-educadora. Graduada em História da Arte e Mestra em Letras, nasceu e mora em São Paulo. Publicou textos em revistas como RevistaRia, Subversa, Desvario e Mallarmargens, e na zine Despacho, edição 6, organizada pela Corsário-Satã. Teve um videopoema selecionado no 4° Concurso de Videopoesia da Desvairada – Feira de Poesia de São Paulo (2020). Atualmente, colabora no portal Fazia Poesia, no Medium. Há alguns anos, só lê mulheres.
Instagram: @rezende.danielaa
Medium: medium.com/@rezende.dna
***
Georgia
uma velha recolhendo ossos no deserto
é
uma velha recolhendo ossos no deserto
minha mãe em um ônibus a caminho do sertão
é
uma velha recolhendo ossos no deserto
uma leoa habitando a imensidão estéril
é
minha mãe em um ônibus a caminho do sertão
a mãe de minha amiga morta anteontem
enterrada e pranteada ontem
que faz falta hoje e amanhã
é
uma leoa habitando a imensidão estéril
a mãe de minha amiga morta anteontem
é
minha mãe em um ônibus a caminho do sertão
é
um fruto apodrecendo fora da árvore
é
a filha apodrecendo fora da mãe
é
um vazio instaurado no sertão
é
a imensidão estéril do deserto
é
a leoa, a velha, a mãe, o fruto
é
uma velha recolhendo ossos no deserto
do pó dos ossos que faz o deserto
*
Poema das pernas que abrem
abro o poema como quem abre as pernas contra a vontade
nele cabem muitas coisas
cabem
muitas coisas
cabem
a primeira gota de meu sangue que escorreu
a primeira lágrima logo na chegada
da primeira mulher à lua
cabem
minhas fantasias lésbicas de madrugada
minha mãe espancada no quarto da memória ao lado
cabem
meus dentes perdidos na infância
os cachos do seu cabelo perdidos
entre meus dedos
os lençóis amassados, os copos quebrados
ao longo de toda uma vida
cabem no poema também
todos os poemas ruins que escrevo
todos os poemas ruins que os poetas escreverão
na tentativa de dizer o indizível
na tentativa de exprimir
o inexprimível
nesse poema de pernas abertas cabem ainda
a morte dos que vivem
a vida dos que morrem
cabem todas às vezes em que achei que o mar me levaria
e todas às vezes em que desejei que o mar me levasse
e todas às vezes em que o mar desejou me levar
e todas às vezes em que ele não me desejou
por fim, no poema cabem as pessoas que partem
– afinal, as pessoas partem –
com suas malas pesadas, com suas lágrimas
sem saber como voltar
abro o poema como quem abre as pernas
nele cabe a mesma ação involuntária
automática
fleumática
a mesma idêntica autodefesa
com a qual escrevo
cabe no poema uma tentativa alucinada de gritar socorro
– socorro –
e só conseguir sussurrar
– socorro –
e só conseguir balbuciar
outras palavras
*
Sem título
São 7h da manhã. Saio para trabalhar, vejo o Cristo da janela. Abro a porta de casa e descubro: estou pegando fogo do lado de fora. Encostada à parede do corredor do prédio, estou ali encostada pegando fogo em altas labaredas e nuvens de fumaça. Como posso estar simultaneamente pegando fogo e saindo para o trabalho às 7h da manhã é um mistério para mim. Pode ser um duplo meu, imagino; uma sósia. Uma pessoa muito parecida comigo: idênticos o tom da pele, a altura, o peso e os cabelos. Não sinto nada – não sinto a dor da outra que aos poucos sucumbe carbonizada – que não seja espanto e confusão. De onde ela veio? Por que está pegando fogo? Por que eu estou pegando fogo? Como os sprinklers do prédio não se ativaram para apagar o incêndio? (Essa última pergunta me inquieta: estarão quebrados?) E como mais ninguém – nem mesmo a vizinha fofoqueira do apartamento ao lado –, e como mais ninguém, repito, reparou naquele corpo pegando fogo? Olho para o capacho de minha porta, repleto de cinzas. Acompanho por exatos cinco minutos a cena, até que o fogo se extingue por falta de matéria-prima que alimente a combustão. O que resta é um monte de carne queimada – o cheiro é terrível; a pele grudada, os cabelos chamuscados, os ossos à mostra. Um corpo deformado – o meu corpo. Mas estou saindo para o trabalho, lembro, estou, inclusive, atrasada. O primeiro ônibus já deve ter passado pelo ponto lotado das 7h da manhã. Delicadamente, pulo as cinzas, com receio de sujar minha roupa com a mácula deixada pela queima espontânea de meu corpo – ou do corpo de outra pessoa, que ainda é meu. Desço as escadas estupefata. Melhor avisar o zelador de que ainda estou viva, ainda que morta, e de que é necessária uma limpeza no quarto andar. Na rua, o sol arde a pele, como se queimasse. Mal amanheceu e todo esse calor. Corro até o ponto de ônibus. O local segue apinhado de trabalhadores desanimados, que esperam o transporte coletivo como se fossem um cardume, um único bicho faminto. (Céus, como eu queria um cigarro!) Olho de relance as janelas de um carro que passa: meus olhos faíscam, brilham de volta no reflexo. São dois faróis, os meus olhos; dois sóis incandescentes.