Dois poemas e um conto de Luciene Carvalho
Luciene Carvalho vive e dessa seiva faz poesia. Começou a declamar aos dois anos e meio em Corumbá, cidade onde nasceu. E esse pantanal de poesia fez-se mais que qualquer outro caminho que pudesse. Essa poesia feminil é tribuna e cidadania e veículo e passaporte. Luciene É pra poesia.
Carvalho é membro da Academia Mato-Grossense de Letras (AML).
***
Sara!
Veará cortina e fogo
rosto cansaço.
Sara, unha arranhando pescoço.
Percorre, revirando olho,
açoite sem vírgula
na carne acordada.
Atripe, mal tripe e Sara!
Corte na centelha
enquanto ri e chora.
Rompe o verbo,
rompe o sono,
abandono dos iguais.
Sem rumo certo
ou marcas por onde pisa.
Sara, abscesso de flor
que vricenga a manhã.
Nem tropeço
ou légua de sangue,
Sara!
(De Sumo de lascívia [2007])
*
Conta-gotas
Eu velarei a noite inteira, mãe, estarei atenta ao conta-gotas nas horas certas da medicação, creia. Conseguirei o seu perdão por tantas falhas, tanta frustração. Ah, mãe! serei motivo da sua admiração, a senhora se esquecerá da perda do seu filho. Eu prometo lhe recompensar pela moça sem beleza, pelo genro pífio, de profissão modesta e ambição tacanha. Minha fé tamanha trará a recompensa. O médico me disse que com algum cuidado levarei a gestação até o fim, é certo sempre ter sido um tanto frágil e sem viço, mas, desta vez, vou dar conta do serviço. Isso é vital pra mim: terei nosso menino. Eu me vejo entrando em sua casa, por uma vez vitoriosa, levando o nenêm nos braços envolto em manto azul, será noitinha, meu ventre ainda abaulado, meu peito cheio. O passo cuidadoso do pós-parto, seguirei até seu quarto, que fica logo após o meu de filha pouca; minhas mãos seguirão até sua direção, lhe entregarei meu filho mãe, que será nosso. Nossas tardes após então serão serenas e seremos íntimas e cúmplices.
A senhora me ensinará todos os cuidados, estaremos próximas, talvez voltemos a morar juntinhas. Talvez eu não descubra como ser mãe sozinha. Só preciso de repouso, de descanso pra atravessar por essas seis semanas, o remédio que me deu o médico nem é ruim, só tenho que atentar ao conta-gotas.
(De Conta-gotas [2007])
*
Epifania
Formiga que passeia pelo leito
atônita, sem direção definida.
Chama a minha atenção
o inseto desgarrado e frágil.
Patas-fagulhas céleres avançam
num sem rumo e noutro.
Teria perdido a rota?
Fugido da caravana?
Por que desperta em mim
tamanho interesse?
Formiga espelho.
Formiga eu também sou.
Formiga eu também sou.
(De Teia [2001])