Duas crônicas de Ana Paula Campos
Ana Paula Campos por ela mesma:
“Meu nome é Ana Paula Campos, hoje com 39 anos, mudei muito ao longo dos anos até chegar aqui.
Minha avó era indígena e meu avô um homem negro. Ela sempre nos benzia com ramos e fazia chá quando tínhamos alguma dor. Meu avô não conheci. Morreu quando minha mãe ainda era criança. Minha mãe era uma negra alta, bonita e independente. A mãe do meu pai era uma mulher branca muito racista. Sempre dizia que meu cabelo era ruim e colocava pregadores de roupa no meu nariz pra afila-lo. Minha mãe parou de falar com ela.
Em relação ao cabelo a escolha sempre foi minha, então, alisei meu cabelo quando tinha 12 anos porque não via mulheres negras na televisão nem nos livros. O produto pra alisar acabelo fazia feridas na minha cabeça e eu ficava uns dois dias sem ir pra escola por causa do mau cheiro.
Meu pai e minha mãe gostavam muito de ler então na minha casa sempre teve muitos livros. Eu lia muito e leio até hoje. É uma das cosias que mais gosto de fazer.
Quando eu já era professora, conheci o pai da minha filha, Gigi. O príncipe virou sapo e nos separamos. Passei a cuidar de Gigi praticamente sozinha, mas nós já estamos acostumadas assim. Somos uma dupla imbatível!
Decidi cortar o meu cabelo e tirar o alisamento e comecei a ler livros que falavam sobre ser negra e sobre a África. Hoje sou pesquisadora das culturas africanas e saio pelas escolas falando sobre as belezas da negritude, sobre o candomblé e a umbanda, que são religiões de matrizes africanas e contando histórias. Também me tornei cronista do Jornal Potiguar Notícias, aqui de Natal.
Combato o racismo e as desigualdades sociais diariamente. Essa luta é a minha vida!
Hoje sou uma mulher negra, que luta pelos meus!”
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BRASIL ACIMA DE TUDO, DEUS ACIMA DE… NÃO, ESPERA!
O atual presidente do Brasil (que não me representa) foi eleito com esse slogan: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.” Esta expressão por si só já evidencia o caráter de hegemonia cultural presente no nosso país, legitimado por Bolsonaro.
Quando a classe dominante impõe sua visão de mundo como uma norma cultural, universal e válida, como natural e benéfica para todos, agride ferozmente todos àqueles que pensam diferentemente e seguem uma religião diversa do cristianismo. Vivemos numa democracia (atualmente é questionável) e por esta razão, devemos alimentar o nosso perfil contestador, mas por que isso apenas se aplica às religiões de matrizes africanas?
Se pensarmos em termos históricos a ideia de monoteísmo é muito recente. O hinduísmo, por exemplo, é uma das práticas religiosa mais antigas do mundo com seus mais de 33 milhões de deuses/as. Os/as deuses/as da Grécia e do Egito, estudados/as nas escolas regulares, são vistos com respeito e admiração, ainda que na perspectiva de mitos. A imagem de Afrodite é conhecida e venerada no mundo todo como uma mulher realmente bela, mas porque a orixá Oxum não é respeitada da mesma forma, uma vez que ambas são as divindades do amor e da beleza? Poseidon com seu tridente impõe um ar de superioridade e poder, mas o mesmo não pode ser dito de Exu com o mesmo artefato, que ao contrário, impõe medo sendo frequentemente associado ao demônio na visão do cristianismo. Por que conseguimos ver com distanciamento e sem temor os deuses hindus, gregos e egípcios, mas os orixás do candomblé, da umbanda e das demais expressões religiosas de matrizes africanas, não?
A resposta para esta pergunta está na História escravagista brasileira. A elite e o clero consideravam os aglomerados de negros/as como focos de rebeliões descrevendo-os/as como “negros perigosos promovendo desordem”, conforme descrito no livro Cidades Negras. O medo propagado entre todos, provinha muito mais do risco de perder seus privilégios brancos do que propriamente das manifestações de fé que divergiam do cristianismo, descritas ainda como “superstições que aprenderam em suas terras”.
Admiramos a cultura e a filosofia grega que pautam nossas sociedades, pintamos os egípcios de brancos nos livros didáticos e nos filmes e com isso muitos nem se lembram que o Egito fica situado no continente africano.
O princípio da doutrina cristã de que devemos cultuar apenas um deus que, não por acaso, é um homem, branco, loiro e de olhos azuis, reforça a cultura machista e racista na qual estamos inseridos. O racismo religioso está presente no país e fica cada vez mais forte quando, em nome de um deus branco, alguém agride verbalmente o/a candomblecista, umbandista juremeiro/a, mata seu semelhante, expulsa seus/suas filhos/as homossexuais de casa, e estupram suas filhas para que aprendam a gostar de homens.
O número de ataques à terreiros cresceu de forma assustadora esse ano no nosso país o que evidencia uma cultura racista e violenta que, legitimada pela autoridade máxima do Brasil, atinge diretamente as camadas mais vulneráveis da sociedade.
Toda essa violência e intolerância religiosa é causada pela falta de informação, conhecimento e pela imposição da hegemonia branca. Somos a imagem e semelhança de Deus ou criaram esse Deus a sua imagem e semelhança?
Por que nos sentimos tão à vontade para zombar e questionar a religião do outro, mas não aceitamos refletir sobre o que está posto nesse texto? Apenas pensemos. Exercitemos, pois, a nossa democracia.
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NINGUÉM NASCE NEGRA. TORNA-SE NEGRA!
Permitam que eu me apresente. Sou Ana Paula Campos, uma mulher negra de 39 anos. Por que preciso dizer isso? Porque sou negra há muito pouco tempo.
Por ser dona de um cabelo cacheado e volumoso, sempre ouvi, quando criança e ainda hoje, expressões do tipo:
– “Prenda esse cabelo para domá-lo!”
– “Você é tão bonita, se alisar o cabelo vai ficar ainda mais bonita!”
– “Tadinha, a mãe tem cabelo liso, mas a filha nasceu com cabelo ruim…”
Eu não conhecia a literatura negra, não me sentia representada em lugar nenhum. A minha referência de beleza era minha mãe, uma mulher negra, magra e de cabelo liso. Eu não me encaixava.
A minha cor em si nunca foi um problema. Apelidada carinhosamente pelos amigxs de “nêga”, se sofri com o racismo nas escolas particulares de Natal foi tão velado que não percebi. Não estou dizendo que não exista. Sempre há.
Já o cabelo… ah, o cabelo era um problema. Alisava a cada três meses porque a raiz crescia rápido e eu não queria nem sinal daquele “pixain”. Eram quatro horas de sofrimento com um produto que fazia arder e queimar meu couro cabeludo e frequentemente deixava feridas. Mas eu fazia qualquer coisa para me sentir aceita.
Ser aceita… por que eu precisava da aceitação de pessoas que não me achavam bonita ao natural? Por que eu precisava da aceitação de pessoas racistas e preconceituosas?
Tomei coragem e fiz o “Big Chop”. Quem eu era, foi-se com os cabelos. Mas a questão é: quem eu sou agora? Hoje meu cabelo black ou trançado responde por mim. Aonde eu chego, ele passa o recado: “estou segura demais de mim pra ser silenciada e alisar minhas raízes, negando quem eu sou”.
Mas na realidade não é tão simples assim. Frequentemente eu prendia os cabelos ou perguntava se estavam “muito armados”. O que estou tentando dizer é: sou uma mulher negra, ainda em construção. A transição capilar pode durar em média um ano, já a consciência identitária varia de preta para preta e pode durar uma vida inteira.
O tão sonhado empoderamento não é algo que acontece magicamente. É fruto de leituras, reflexões e lutas internas contra os padrões de opressão. Mas o caminho entre a descoberta e a autoafirmação é fascinante. Caminhemos…
Então, ao cruzar com uma crespa ou cacheada que alisa o cabelo, não diga que ela precisa deixar o cabelo natural. Não decida por ela se está ou não bonita. O empoderamento é um processo lento, doloroso e individual, e cada uma decide como é feliz.