Duas crônicas de Icléia Rodrigues de Lima
Icléia Rodrigues de Lima é graduada em Letras pela UFGO (1968), Mestra em Filosofia da Educação pela FGV-RJ (1981) e Doutora em Educação pela FEUSP/USP (1992). Foi professora do Curso de Graduação em Letras da UFMT, dos Programas de Mestrado em Educação da UFMT e da UEL e do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO/UFMT). As duas crônicas abaixo fazem parte de seu livro Passado a limpo (2018), que integrou o box comemorativo dos vinte anos da Editora Carlini & Caniato.
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As cores e os cheiros do tempo
Lá atrás, desde a época das garatujas, o quotidiano tinha cores e cheiros, conforme os meses do ano que a gente vivia. Até hoje os fins de ano me aparentam um jeito catalano de viver: o mês de dezembro tocava as retinas e as narinas.
Elas, as cores, estavam nos flamboyants próximos do colégio, nos galhos de jasmim-estrela debruçado nos muros cobertos do musgo próprio das Águas, nas dálias do jardim da vó Preta, no almeirão florido que meu avó Filico separava na horta para sementeiro, na trepadeira de “azulzinhas” do alpendre de minha avó Maria Abadia. As coisas cheiravam mais ou diferentemente. Era o perfume das rosas de minha mãe, do patchuli que ela punha no sabão caseiro de tacho, da canela posta no doce de figos em calda. Era a erva-doce das broas de fubá, aquelas quitandas caprichadas para Fim de Ano.
Essas notas se misturavam com as fragrâncias de ano inteiro. Era aquela do Vale Quanto Pesa de nossos banhos, da Áqua Velva da barba de meu pai, da “bonilha” e “manoscada” que emanavam sempre que ele abria a sua latinha de rapé. E era ainda o perfume embriagante da murta da praça do Cine Teatro Real, que morreu junto com a primeira água-de-cheiro que a adolescência me deu de presente, o White Magnolia.
E havia principalmente uma flor de muitas cores, sempre rebrotada nos dezembros de minha vida, e que me seguia no Brasil por onde andei. A “moça-e-velha” que os botânicos chamaram de zínia, era uma beleza feita de inumeráveis encarnados, roxos, corais, lilases, raros brancos e nenhum perfume. As “moça-veia”, como chamarão os mais simples, enfeitavam os terrenos baldios, aquelas datas também velhas de meu bairro de cerrado. A gente entrava naquelas capoeiras e juntava braçadas dessas flores para enfeitar as mesas e algum oratório.
Esses jardins de ninguém, além de “moças-veias”, escondiam outras riquezas também próprias das águas de dezembro. Colhiam-se neles batata-doce, muitas abóboras tenras ou maduras escondidas e mais os brotos para cambuquiras, e mais beldroegas, tomatinhos, jurubebas, pimentas. Mas isso já é outro assunto, rente com as panelas e o gosto das comidas goianas de dezembro.
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A crítica cartesiana de seu passado
De pequena, eu fui uma dedicada artista de rua. Explico. Nasci e me criei numa rua sem asfalto, coisa que vim a conhecer só depois dos 12 anos. Era uma terra batida pelos pés da gente e dos bichos que viviam no entorno, socada por rodas de carroças, cascos de cavalos, pneus de bicicletas, de Jeep que já havia alguns e de alguns outros raros automóveis.
O chão de minha rua ficava salpicado de estrume quando passava boiada. Soltava poeira na estação da seca, tinha um cheiro bom nas primeiras chuvinhas de setembro, criava um lodo verde rente aos muros na estação das águas, secando de novo, depois dos veranicos de janeiro. Nas chuvonas que havia muitas, descia pelas valetas uma enxurrada boa e morna, que a gente sentia até as canelas marchando nela depois do aguaceiro; os pais nunca falaram de doenças, etc. A época do ano em que o chão ficava duro, seco e liso era a minha estação do carvão. Também explico.
Eu levava do fogão de lenha da cozinha um punhado de carvão. Era a matéria-prima e “mitrial”, como falava meu avó Fiico, para meu engenho, desenho e arte em frente de casa. Foi daí que, um dia, desenhava uma cena de circo. Pendurei uma acrobata numa corda. A linda moça tinha um lindo cabelo voando lindamente ao vento. Era colorida a roupa, com as cores que não havia, mas eu imaginava. Começou a juntar gente para ver a minha arte. E juntou, e juntou, e fizeram um anel em volta de mim. Aquilo me empolgou e eu fui enfeitando mais a minha acrobata. Pus raminhos no maiô, ajustei pulseiras nos pulsos e dependurei um colar precioso no pescoço dela. Então escutei uma voz de adulto atrás de mim. Era o seu Passarico, um sujeito baixote da vizinhança com aquela voz que eu achava pequena e enjoada como o dono:
_ Uai, siá! Se a muié tá pindurada de cabeça pra baixo, a modiquê o colar dela tá grudado no peito? Ele tinha que caí tamém, num tinha?
Eu me lembro que uns dois ou três riram. Fiquei desapontada, com os joelhos ali no chão e em cima deles as mãos paradas.
Aquela se tornou a primeira grande crítica que tive na vida acerca de um ato criativo. Claro, já havia desenhado na parede da casa, mas não considerei a coça de chinelo que eu levei uma crítica, mas um castigo de minha criação. Crítica, mesmo, assim, preto no branco, foi aquela do vizinho.
Bem mais tarde, um certo professor me fez a segunda grande crítica. A frase dele sobre um projeto de pesquisa me fez lembrar minha acrobata de colar equivocado e a fala certeira de seu Passarico:
_ Você pode fazer o que quiser. Mas antes tem que ser cartesiana. Tem que avisar que vai sonhar e delirar e esperar o aplauso do que aceita, tanto quanto o riso do que desaprova!