Duas crônicas de Michel Yakini
Michel Yakini é escritor e artista-educador. Cofundador do Coletivo Literário Sarau Elo da Corrente do movimento de literatura das periferias de SP. Publicou Desencontros (contos, 2007), Acorde um verso (poesia, 2012), Crônicas de um peladeiro (crônicas, 2014) e Amanhã quero ser vento (romance, 2018). Site: www.michelyakini.com.
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Eu viveria sem literatura
Esses dias li um post de um amigo dizendo sobre a necessidade da Poesia, de não conseguir viver sem a bendita. Também não viveria sem Ela, tampouco sem a palavra, mas talvez sem a necessidade de ler e escrever, pois se hoje essa querência é irreversível, houve um tempo que isso não era fundamental.
Quando miúdo, sonhava ser jogador de bola, o restante não fazia muito sentido, gostava de batucar e versar no terreiro do peito, na pele do meu corpo-tambor, de ouvir lamentos dos mandingas e bambas ou as prosas dos nego-véio nas pirambeiras daqui, mas não associava isso com Poesia.
Hoje Ela tá comigo em cada alvorada, quando verso preces, mentalizo boas energias pro dia, agradeço a última lua e reparo nos cochichos do silêncio. Parte da minha escrita são sopros, fios de vida que vertem cifras de palavras em mim. Uma Vózinha de Aruanda confirmou: “Muito do que ocê escrevinha são seus protetores que te contam, pequeno”, e assim entendi porque Poesia tem nome próprio.
Dia desses um Caboclo me contou sobre uma missão com o conhecimento e o escambo das artes, sobre as intimidades com esse mote, que vem de tempos antigos, e da força que as leituras têm pra guiar veredas futuras. Acredito! Okê Caboclo! Aliás no mundo sagrado não falta Poesia, não só pelos verbos, incensos e cores que cada energia oferenda pra gente, mas também pelos nomes, fiquei admirado quando conheci o Sr. Laroyê do Sol, nome gracioso. É inevitável, lembro dele em todo amanhecer.
Assim, as bigornas da minha alma tem permitido a alquimia de aços em águas, as quais tenho navegado pra encurtar as beiradas do mundo. Em cada pontinha de mar faço questão de banhar minha coroa, pra ser fértil e multiplicar voltas, pra cultuar Poesia e regar as palavras da minha passagem.
Até um dia desses, o ritual chave era fazer leituras pra minha pequena. Imagine, ela andou pelos vilarejos de Luanda, viu letras penduradas nas barbas do Tio Rui e escreveu uma carta prum concurso de rádio pra ganhar uma bicicleta sem nem sair da cama… Talvez é por isso que Poesia abre trilhas dentro da gente e alimentam nossa secura de beber verdades de mentirinhas.
Poesia mora na imaginação, na capacidade de ficção, no desejo sagrado de uma breja no fim da tarde, no abraço-alegria da pequena na volta da escola ou quando Dona Elisa diz “no verão o calor derrete a roupa no varal”.
Persigo saber onde fica a encruza, a mão dupla e a bifurcação entre oralidade e escrita, reconheço esse encontro pra além do ringue capenga entre isso ou aquilo, onde não cabe a desculpa-muleta da “voz ser a rainha e a escrita um anjo torto” ou “da literatura só existir na escrita”. Nessa busca encontrei Poesia no silêncio das páginas e na ventania da voz, na íris cerrada e nas miradas da vida. Por isso eu até viveria sem ler, escrever ou sem literatura, mas como disse meu amigo, jamais sem Poesia, pois Ela é, e continuará sendo, a força motriz das minhas crias.
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Um deus chamado cânone
“… O mercado tá de olho
é no som que Deus criou…”
Heavy metal do Senhor – Zeca Baleiro
“… Porque não me esforço para acreditar em Deus
Esforço-me para que Deus acredite em mim.”
O peregrino – Sérgio Vaz
Esses dias me perguntaram numa palestra: O que você tem lido? Percebi a curiosidade em saber se os livros da periferia e de autoria negra são meu repertório exclusivo ou se também me dedico aos cânones.
Falei sobre algumas leituras, mas principalmente da minha intenção em ser livre pra ler e focar meu trampo como eu bem entender. Já ando cheio de muros e não dou conta, mas ir além da esquina é algo positivo na minha criação. A urgência informa: a boa nova é fazer literatura engajada, como se isso não existisse antes ou como se a necessidade de tocar nas feridas do santo seja fundamental somente agora.
Quando tive na trilha de finalizar meu primeiro romance, o que combinou bem foi ler vários livros do gênero e dar ouvido as vozes, e por aí muitas encruzas foram reveladas. Desde a tentativa de destruição do estilo, os monólogos e fluxos de consciência, até mesmo sair na rua e ouvir a versação do trem, dos butecos, e das pontes foram diálogos possíveis.
Por outro lado, há cânones que leio, anoto, ouço e viro de ponta cabeça e não me empolgam. São livros e vozes endeusadas que não dão liga, mas deus é a imagem da perfeição, e eu, mortal leitor e ouvinte, carrego o castigo por não seguir a lei, por vezes cruel e punitiva, desse deus chamado cânone.
A busca sedenta pra se tornar um semideus faz com que a repetição das fórmulas de canonização seja insistente em algumas produções. Acontece com o texto que embeleza a vitrine ou com o verso que busca o aplauso caloroso de um recital.
O diabo é: segundo os mandamentos de deus, é preciso demonstrar que o referencial é o bendito cânone, senão há um convite ao coma literário, a tomar a pílula da inexistência. A literatura que não se curva feito um plebeu ou nega a ser escrava do império iluminado, paga o preço imposto pela nobreza editorial e crítica, que elege os santos e os pecadores da palavra.
Em alguns dicionários a palavra cânone aponta pra etimologia da palavra grega kanón, e do hebraico kaneh, um cano de medidas, símbolo fálico utilizado pra definir norma ou regra. Há quem use esse símbolo pra equivaler a literatura de alguém e pra apontar a falta de temor a deus.
Aliás, não é só santo canonizado que merece valor. Em “A Alma Encantadora das Ruas”, João do Rio conta que S. Gurmim e S. Puiúna, nunca foram reconhecidos, mas intercedem por dor de calo e de nevralgia que é uma beleza. E por aí não faltam escritores e escritoras que nunca tiveram fortuna crítica, premiações e nem grandes aplausos, mas operam milagres.
No meu caso, sigo como um simples e mortal escriba, com a velha distribuição mochileira, gastando sola nas feiras de asfalto, e apostando no auto-jabá. Porque nunca fui santo, faço questão de negar três vezes a urgência antes do galo cantar e corro o risco de ser considerado um ateu verbal, um herege, digno de queimar na fogueira eterna do pecado literário.
michel yakini
agradeço a alegria de publicar neste quintal. axé!