Duas crônicas e dois contos de Mariléia Sell
Mariléia Sell: “A literatura sempre fez parte da minha vida. Talvez por isso, tenha optado por me graduar em Letras e Jornalismo e por buscar mestrado e doutorado em Linguística Aplicada. Tenho várias publicações acadêmicas e recentemente comecei a escrever crônicas e contos, que publico em uma coluna semanal no periódico Visão do Vale e no meu blog Letras Insubordinadas. Equilibrando a forte influência do texto acadêmico com a profunda inspiração de textos literários, eu forjei um estilo de escrita leve, porém contundente. Em minhas crônicas, busco promover os acontecimentos do cotidiano, da vida comezinha e ordinária, a fenômenos sociológicos complexos e altamente narráveis.”
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Continuam jogando pedras na Geni
Geni esteve na minha sala esta semana. Não a Geni da canção de Chico Buarque. Era outra Geni, mas era também uma Geni feita pra apanhar. Tinha uma queixa a fazer, Geni. Seu menino, o caçula, estava sofrendo bullying na escola. A turma o chamava de gordo, saco de areia e fedorento. “Gordinho ele até é, mas fedorento, não”, garantiu, com orgulho ferido de mãe. “Meu filho tem problemas na cabeça”, explicou. “Mas ele já aprendeu a ler e a escrever e desenha muito bem. Queria que tu visse a bicicleta que ele desenha, tem até os ferrinhos da roda”, conta, satisfeitíssima, sorrindo com todos os dentes da boca. “Eu queria que ele estudasse um pouco mais”, sonha.
O empenho de Geni era comovente. E não era sem motivos. Além do caçula, tinha mais duas filhas, todos com galactosemia, uma doença hereditária que pode provocar, entre muitas coisas, atraso neurológico severo. A filha de 30 anos fora condenada à cama e nunca pudera ir à escola. A do meio, de 19 anos, até tentou, mas não deu certo. Tudo o que aprendeu em cinco anos de bancos escolares foi rabiscar algumas letras do seu nome. “Sofria muito bullying”, lamentou Geni. “Faziam ela de cavalo e montavam nela, jogavam pedras e cuspiam nela”. Definitivamente, o mundo letrado era negado para as filhas de Geni. Bem negado. Duas vezes negado. Além de não aprenderem a decifrar as letras, agora também não as podiam enxergar mais; estavam ficando cegas.
Mas Geni não era mulher de se entregar assim, teimosamente agarrava-se na esperança de que o caçula teria algum futuro. Afinal, ele conseguira alcançar o eldorado das letras. Inflada de esperanças, Geni assumiu o dever de investir na vida escolar do filho. Tinha até outras coisas importantes para fazer naquele dia: “eu tinha que ir a Porto Alegre buscar um leite especial”. Tinha também a questão das fraldas para a filha mais velha. Um político muito bem-intencionado a procurara para dizer que podia requerer o benefício do governo. Mesmo com tantas demandas em sua agenda, priorizara a escola do filho, antes que ele resolvesse desistir. Estímulo para desistir não faltava. A filha do meio o incentivava enfaticamente a largar a escola. “Ninguém presta”, repetia, como mantra, para todos que quisessem ouvir, e também para os que não quisessem, do alto de seu conhecimento epistêmico sobre escolas. Ela, a filha do meio, estava sem tratamento psicológico há mais de ano e o seu estado de saúde piorava visivelmente: “ela passa o dia sentada num canto”. “Foram cortes nas verbas da saúde”, explicou Geni, com olhos vazios.
Já profundamente comovida com o calvário dessa mãe, pergunto se ela tem algum tipo de apoio. Além de não ter, eu descobriria que a desgraça é caprichosa nos seus excessos. O marido estava sem andar porque sofrera um AVC. “Sou eu pra tudo”, suspirou. Quem poderia ajudá-la eram seus outros dois filhos “normais”, que até então Geni não havia mencionado na sua narrativa. Mas estavam “perdidos nas drogas”, não contavam. Viviam na rua. “Aparecem para comer de vez em quando e aí levam tudo o que podem carregar”, disse, com os olhos perturbadoramente azuis cravados em mim.
De repente, silenciamos, exaustas daquela catarse. Fixo o meu olhar em uma mancha de mofo na parede, enquanto tento achar algo razoável para dizer a Geni. Antes de conseguir juntar duas letras no meu cérebro, ela se adianta e diz, com a resignação de quem já se reconciliou com a vida, “Deus não dá uma cruz maior do que a gente possa carregar, não é, minha filha”?
Crônica publicada originalmente no jornal Visão do Vale em 31 de agosto, 2018 às 13:52
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Miami é melhor que Fortaleza
Uma experiência sociológica interessante é ficar presa em uma fila, falo presa porque a fila é um lugar compulsório. Inútil resistir, debater-se; a fila é um exercício de resignação, um estágio para a evolução espiritual. Não conheço ninguém que goste de filas, que opte deliberadamente por ficar em filas, embora deva existir alguém nesse mundo. Sempre tem gente do contra! Mas não subestimemos a potência da fila; este lugar tão mundano e tão ordinário já foi merecedor de complexos estudos etnográficos, justamente por revelar práticas sociais igualmente complexas.
Bem, depois de depositar meus 39 itens de metal, conseguir passar pela porta giratória do banco e retirar a senha 4.398, instalei-me em uma cadeira estofada. Hoje em dia, o tempo perdido da espera é compensado com cadeiras estofadas. Quando as hérnias de disco não latejam, os clientes reclamam menos. Comecei a olhar fixamente para o painel das senhas, mas isso, como sabemos, só piora a espera. De repente, meus ouvidos deslizam para uma conversa entre duas senhoras ao meu lado. Elegantes senhoras. Penteadas e escovadas. Cheias de joias. As bolsas custariam o equivalente a um ano de trabalho de uma professora. O assunto era viagens. Comecei a me concentrar no tópico, pensando nas férias, sempre tão desejadas e tão distantes no horizonte. Me disfarcei toda, para que não percebessem minha orelha espichada. Olhei reto para frente, para o moço do caixa, magro e desanimado, provavelmente necessitado de férias. O meu ar blasé encobria um genuíno interesse científico; queria entrar no mundo delas. Se me notassem, entretanto, as falas das elegantes senhoras não teriam valor sociológico, pensei. É preciso ter método!
Tinham estado no Nordeste, as senhoras. Em Fortaleza, mais especificamente. Não se cansavam de elogiar as praias e o hotel magnífico, à beira mar. Já no café da manhã, eram mimadas com tapiocas e frutas exóticas por intermináveis garçons. Tomando sucos de mangaba, apreciavam os coqueiros balançando suavemente. A paisagem as fazia esquecer do frio do Sul. O Sul era terra de extremos! Mangaba é riquíssima em vitamina C; excelente para a pele, lembraram, saudosas. As tapiocas há muito já estavam nas suas cozinhas, por ser um alimento leve, ideal para manter a forma.
A essas alturas, eu já estava tomando coco em alguma praia paradisíaca, mas meu idílio durou pouco. A viagem das senhoras não foi só alegrias; infelizmente elas passaram por alguns desconfortos. Em Fortaleza, havia muita gente feia, lamentaram. A feiura é sempre um elemento a ser lamentado! Horrorizavam-se com as peles tão descuidadas, tão esturricadas pelo sol, tão carentes de vitaminas e de sais minerais. Até as crianças já pareciam velhas em miniaturas. “Não comem proteína”, concluíram em uníssono. Como pode alguém não saber dos malefícios do sol? É tão amplamente divulgado hoje em dia! Mulheres de 25 anos aparentavam ter 45 ou mais. Um verdadeiro horror todo esse desleixo com a aparência! Os cabelos também eram descuidados, ressecados, espetados. Mas isso seus olhos sensíveis até superariam, não fossem os dentes. Como conviver com esses sorrisos murchos?
Também as aborreceu a abordagem invasiva dos nativos. Os vendedores ambulantes não as deixavam em paz por um segundo. Facilmente passavam por gringas, tão brancas que eram: “um verdadeiro assédio”. Como não se incomodar com os corpos tortos e ressecados carregando o mundo para vender? Corpos inclinados com o peso da mercadoria. Com o peso da sobrevivência. Inegavelmente, a estética da pobreza é algo que incomoda. Com tanta falta de beleza, ficou impossível para as senhoras abstraírem da realidade e relaxarem. E quem não precisa, nos tempos que correm, abstrair da realidade? Realidade demais estressa; terreno fértil para os radicais livres. E se há algo a ser evitado nessa vida são os radicais livres. Eles envelhecem.
As próximas férias precisam, definitivamente, ser melhor planejadas, ponderam seriamente. No Nordeste fica difícil para as simpáticas senhoras esquecerem que estão no Brasil. Considerariam seriamente Miami. Se o dólar ajudar!
Crônica publicada originalmente no jornal Visão do Vale em 03 de agosto, 2018 às 13:42
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A vida íntima de Judite
A notícia trouxe completa desolação para Valentina. Judite tinha morrido. As condições da morte não estavam muito bem explicadas. “Morreu de velha”, diagnosticou a avó da menina, Dona Dóris. Valentina nunca tinha ouvido falar que galinhas morriam de velhas, aliás nunca havia pensado sobre a velhice das galinhas. A morte de Judite, definitivamente, precisava de mais explicações. Há poucos dias, ainda a vira enfiada nos repolhos da horta, bicando com a fúria de uma franguinha. Tinha vida social ativa. Andava sempre em comitiva pelo pátio, com as amigas do galinheiro. Ciscavam juntas, porque amigas ciscam juntas. Para uma galinha, não há prazer maior do que ter chão debaixo dos pés para ciscar. E chão havia. Havia tanto que elas se aventuravam em explorações territoriais cada dia mais longínquas. Com suas cabeças mal pregadas ao corpo, ciscavam terras nunca dantes ciscadas. A meta existencial de uma galinha é achar comida, qualquer comida, não importa, e neste propósito lançavam-se com todo o ardor. Voltavam sempre satisfeitíssimas ao anoitecer. Uma vida plena, é o que tinham, Judite e suas amigas.
Judite era a mais mansa de todas as galinhas do seu grupo e deixava-se pegar no colo por Valentina. Nunca se saberia se ela, de fato, apreciava esse gesto. Difícil prever o que passa pela cabeça de uma galinha, presumindo, é claro, que passe algo. O fato é que Judite ostentava aquele olhar de alheamento que só uma galinha sabe ostentar. Apesar dessa aparência estúpida, Judite não era uma galinha das mais ordinárias. Tinha prestígio. Nunca falhara com o seu compromisso diário. E orgulhava-se da sua constância; não havia turbulência no mundo que a desviasse da sua missão de galinha sobre esta terra. Era uma galinha de currículo blindado. E não deixava por menos: em matéria de propaganda, Judite não era boba: cacarejava para que todo mundo soubesse de sua competência. Para uma galinha, é importante manter a reputação em dia, porque sempre se acha outra utilidade para as incompetentes. Galinhas precisam ser úteis. Nada mais. Não se tem maiores expectativas sociais sobre galinhas.
Tudo corria bem para Judite. Continuava a funcionária modelo do sítio. Ano após ano, batia ponto no galinheiro: ninguém poderia acusá-la de indolência. Porém, e provavelmente ela nunca tivesse pensado sobre isso, a idade é o terror de todos as coisas que se mexem. Isso também se aplicava às galinhas. No vigor da juventude, no auge da produtividade, ninguém lembra da inevitável lerdeza na velhice. No caso de Judite, ela ainda batia a sua meta diária de colocar um ovo. O problema é que já não eram os mesmos ovos e isso, claro, não passou desapercebido pelo setor de controle. Já não se poderia mais certificar os ovos de Judite com algum ISO qualquer. Os ovos estavam com seríssimos problemas de qualidade. E o mundo perdoa qualquer coisa, menos a falta de qualidade, menos o prejuízo. Em tempos de aclamado pragmatismo, de elaborados cálculos econômicos que precisam a relação custo benefício, de elaboradíssimos gráficos que revelam a evolução da produção, baixar a qualidade significa a adoção de medidas de austeridade. Judite enfrentaria medidas de austeridade, seria substituída por alguma galinha mais jovem. Essa regra aplica-se a galinhas e também a humanos. O mundo é assim.
Voltando aos ovos de Judite, eles já não tinham a consistência dos ovos das colegas mais jovens. A clara e a gema não tinham mais os limites firmes da casca e desmanchavam-se ao mínimo toque. Não faltaram relatórios de Dona Dóris para atestar a carência de cálcio nas cascas. Isso, claro, é um fato preocupante. Para Judite. Porque há sempre outra utilidade para uma galinha. Porque a humanidade não tem tempo para se abalar com o destino de uma galinha, seja a Judite ou seja a Laura.
No almoço daquele sábado, entre um prato e outro de galinhada, Valentina voltou a inquerir a avó sobre a morte suspeita da Judite, sua galinha favorita. “A Judite morreu de velha; todas nós morremos de velhas, minha filha”.
Conto publicado originalmente no jornal Visão do Vale em 25 de abril, 2018 às 19:22
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A escolha de Margarete
Margarete vagava pelas calçadas da vizinhança. Tão logo caísse a noite, as tentações se multiplicavam. Também pudera, sua beleza não encontrava parâmetros neste mundo. Seu jeito requebrado e sedutor de andar, seguro e provocativo, roubava a paz de todos. E de todas também. Seus olhos eram sempre cheios de promessas e de insinuações. Tinha uma voz rouca, excessivamente auto-confiante, dessas que baixam as defesas de qualquer um e que arrastam para mundos pouco convencionais. E todos sempre queriam ser arrastados. Todos e todas. Não faltavam convites para a vida boêmia e a ela entregava-se sem limites. E sem pudores. Era muito intensa, Margarete. Assim, para o espanto de ninguém, em uma dessas noites insones, engravidou. Teve dois filhos. Sim, logo dois! Ambos saudáveis e lindos! Um acidente que pode acontecer na vida de qualquer uma.
A partir de então, Margarete começou a conviver com dilemas dilacerantes: conciliar os deveres da maternidade com a sua vida de jovem solteira. A cada dia que passava, era-lhe mais difícil equacionar as intermináveis mamadas com os chamados do mundo, sempre tão urgentes e tão interessantes. Como todas as mães, vivia no limite. No limite de suas forças e de seu juízo. Era duro suportar o peso de tantas expectativas sociais. Como era difícil! E solitário também. Uma mãe nunca pode contar às outras da sua inconformidade, da sua secreta revolta. Reclamar seria tomado como um gesto de muita ingratidão, quando é de domínio público que as mães gozam dos privilégios do paraíso. Mãe que é mãe padece no paraíso, sem jamais reclamar! O que seria dos alicerces do mundo se as mães dessem para reclamar? Tem coisas que o mundo não está preparado para ouvir. O mundo não quer ouvir. Seria muita verdade para suportar! Podemos lidar com qualquer coisa, menos com a dúvida sobre a devoção materna; esta é perene e eterna, mais até do que Deus, eu arriscaria dizer.
A sorte favoreceu as boas intenções de Margarete. A solução para os problemas se apresentava, afinal, assim, meio sem querer, sem premeditações, sem planejamentos elaborados, como acontece com todas as grandes ideias. Encontrara uma estrutura perfeita e segura para acolher os filhos. Uma casa grande, habitada por pessoas de bom coração, como já pudera observar. Havia um pátio colossal, perfeito para as brincadeiras. Das janelas da casa, costumava sair cheiro de bolos quentinhos e de café. Tinha até piscina. Era gente bem-sucedida na vida, com absoluta certeza. Margarete lançou-se à estratégia. Tinha pressa em organizar o futuro! Após dias de vigília, o plano ganhara contornos. Em uma manhã de domingo (são as manhãs mais calmas da semana; ideais para colocar em prática esse tipo de projeto), bem cedinho, carregou os pequenos e os deixou na porta do novo lar. Ficou observando à distância. Do seu esconderijo, observaria o susto da família.
Em choque e completamente alvoroçada, a família começou a alojar os recém-chegados. Os encaminhamentos futuros, planejariam depois. Não dá para deixar dois bebês na rua, seria muita desumanidade! E com bebês é necessária toda uma logística. Tem que ver comidinha especial, caminha adequada, brinquedos, toda essa parafernália. Todos na família acharam até empolgante essa ocupação não prevista na rotina diária. Não tardou para que ficassem completamente arrebatados pelos bebês. Como puderam viver sem essas gracinhas? Ninguém lembrava mais da vida de antes. Logo vieram as consultas e as vacinas. E ninguém mais falava em entregá-los para adoção.
Satisfeitíssima, de longe, Margarete acompanhava o processo. Diuturnamente, certificava-se de que os bebês estivessem bem alimentados e cuidados. Para a sua alegria, eles cresciam a olhos vistos e brincavam muito serelepes naquele pátio de proporções tão generosas. Podia, agora, seguir a sua vida, pois estabilidade nunca lhe atraíra mesmo. Era coisa para as indefesas! Também era pouco afeita a esse tipo de amor que prende. Os filhos estavam encaminhados. Sentia-se livre novamente, e o mundo não tinha mais fronteiras.
Margarete era uma gata de rua, mas poderia ser uma mulher como qualquer uma de nós!
Conto publicado originalmente no jornal Visão do Vale em 09 de maio, 2018 às 13:22