“Eu Não Sou Seu Negro” (2016)
Eu Não Sou Seu Negro. Direção: Raoul Peck. País de Origem: Estados Unidos (Coprodução Suíça, França, Bélgica), 2016.
James Baldwin, romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico social. Medgar Evers, Malcolm X, Martin Luther King Jr., três líderes ativistas dos direitos dos negros assassinados entre 1963 e 1968. Em comum entre esses quatros personagens da história recente dos Estados Unidos, o enfrentamento do sistema racista que permanece como cicatriz exposta ainda hoje. E também aos produtos da criação humana – pensados para melhorar (tornar mais suportável e gerar justiça) a existência na Terra – que são instrumentos utilizados para controle, não reconhecimento (de si mesmo ou pelo outro) e morte de negras e negros. A cultura e a política representaram e representam na mesma medida os papéis de algozes e salvação. Quando Baldwin diz que, quando criança, identificava-se com o herói que Gary Cooper era, mas percebeu que esse herói não se identificava com ele e o percebia como inimigo, já que “índios” e “os não brancos” são elementos que causam distúrbio, perturbação à ordem e colocam em perigo o ideal de civilização, está evidenciado um problema de identidade e de representação.
Eu Não Sou Seu Negro, documentário do haitiano Raoul Peck (que tem em seu currículo Lumumba [2000], cinebiografia do controverso líder da independência do Congo, Patrice Lumumba) é um documento que conta a história do racismo nos Estados Unidos da América pela crítica e olhar de James Baldwin, na voz em off de Samuel L. Jackson, antes, durante e depois das manifestações pelos direitos civis, e de como a negação a autorrepresentação construiu gerações impossibilitadas de reivindicar a sua identidade e desprezada pelo ideário ocidental de conquistas e ter “um lugar ao sol”.
James Baldwin é autor dos romances O Quarto de Giovanni, publicado em 1956, que conta a história de amor de dois jovens homens em Paris, e If Beale Street Could Talk, de 1974, que trata sobre a separação de um casal, quando o rapaz é preso sob uma falsa acusação de violação (neste ano o livro ganhará as telas de cinema e terá no comando Barry Jenkins, diretor do aclamado Moonlight, Oscar de Melhor Filme em 2016). Além da carreira bem-sucedida na ficção, Baldwin escreveu ensaios que retratam uma América que tem uma enorme dificuldade de se relacionar com a diferença, que promoveu o extermínio de índios e escravização de negros, e, posteriormente, impedi-o de viver a liberdade em tempos de “democracia”. Um desses textos, na verdade, inacabado, é Remember This House, um projeto em que o escritor viajaria pela América para falar com parentes, amigos e ativistas que conviveram e dividiram a trincheira com Evers, Malcolm e o Dr. King. Manuscrito base de Eu Não Sou Seu Negro (com The Devil Finds Work, críticas de cinema escrita por Baldwin).
Em pouco mais de 1 hora e 30 minutos, Raoul Peck acompanha a jornada de Baldwin às suas lembranças, à sua constituição intelectual, ao entendimento de uma América que interdita ao negro, ao não idêntico ao branco à sua própria história. Recorrendo às falas contundentes de Baldwin a respeito do racismo (e de como um sistema se estruturou sob a convicção de que precisa, para sustentar o seu modo de vida, subjugar – e massacrar – o Outro em todas as instâncias do existir), as imagens de arquivo que evidenciam a representação cultural que impede o negro de acessar uma representação autêntica de quem ele é ou do que pode ser, a fotos e vídeos da violência policial nos anos 1960 e na América pós-anos 2000 e aos sentimentos que transpassaram Baldwin quando soube da morte de cada um dos líderes ativistas (o escritor tinha uma relação de admiração e amizade com os três militantes), Peck segue a definição de Baldwin de que o negro é uma “invenção do branco”, que o homem negro temido ou servil e a mulher negra lasciva ou obediente são construções de um aparato cultural que é “reflexo de um mundo racista” – como argumenta o escritor –, e não que o cinema (maior foco de Baldwin), e as artes em geral, seja uma entidade nascida e organizada para fomentar o racismo. De certo, Hollywood tem sua parcela de responsabilidade no apagamento da história do negro e na forma como essa decisão afetou sua estima (John Wayne ao matar um índio, dava fim a qualquer ameaça à vida dos valores ocidentais que justificavam a tese de superioridade e inferioridade étnicas). Além do cinema, o problema se estende à publicidade e todo um repertório que engendra fantasias e ofensas. Recursos com a finalidade de construir um senso de realidade para o negro em sintonia com a do sistema ocidental de referência cultural – e política. Isto é, ao negro é renegado um sistema de realidade própria.
Na outra ponta, a imensa brutalidade dos assassínios de Martin Luther King Jr., Medgar Evers e Malcolm X (todos amigos do escritor), líderes civis “abatidos” pelo poder de fogo do opressor e a voz de Samuel L. Jackson a transmitir a lamentação e a indignação de James Baldwin. Os três tiveram a vida ceifada antes de completarem 40 anos, em uma América que 50 anos depois elegeria um presidente negro para comandar o país, Barack Obama. Junto aos registros visuais dessas três personalidades, Peck apresenta uma vasta documentação de imagens e fotos de linchamentos, autoritarismo policial, como o espancamento de Rodney King pelos agentes da Lei em Los Angeles, em 1991, e toda forma de humilhação para arrefecer o ânimo de resistentes. Os desvios – ou seus princípios? – da democracia na terra da oportunidade geram abismos, para um desesperançado, mas não vencido Baldwin, em que o medo ao diferente fundamenta a naturalização de um domínio que se tranquilaza ao eliminar os direitos à indignação e à revolta.
Que democracia é essa que silencia e mata quem é oprimido pelo sistema? Baldwin, em seu inacabado manuscrito Remember This House, diz que um homem negro com raiva é apenas um homem com raiva, enquanto o homem branco com raiva é um homem aterrorizado, seus olhos e suas ações carregam um temor social. A saber, teme que seu modo de vida seja modificado, e é justamente esse homem que é capaz de cometer barbáries em nome de uma pretensa pureza de sua formação – e manutenção dela a qualquer custo – e visão de mundo ideal. A violência de quem detém o poder é a violência promovida por um Estado contra o menos favorecido, aquele que está em menor número e sem condições de combater com equivalência – seja no campo das ideias ou das armas. Mas essa raiva e esse medo fazem com que o homem branco se revele, já que os atos que comete em nome de sua “segurança” lançam sombras sobre os discursos da democracia e da liberdade vendidos junto ao “sonho americano”.
Se Eu Não Sou Seu Negro tem um calcanhar de Aquiles, esse é a quase completa falta de referência à homossexualidade de Baldwin, já que o fato traria ao documentário os conflitos internos do escritor e os conflitos existentes entre os diversos movimentos negros na América. Afinal, Baldwin lidou com o racismo e a homofobia, duas lutas constitutivas de seu prática ativista e dos diálogos que travou contra a intolerância estadunidense.
James Baldwin se autoexilou na França nos anos 1940 por não suportar mais as manifestações de um fantasma vivo, da escravidão, do terror dos enforcamentos, da desvalorização da capacidade intelectual das pessoas negras. Lá, publicou O Quarto de Giovanni, sua ficção mais conhecida. Mas ele retorna, não por sentir falta dos Estados Unidos, mas por precisar estar e caminhar ao lado dos que foram colocados à margem do alardeado american way of life. A forte imagem de Dorothy Counts, primeira jovem negra a ingressar num colégio exclusivo para brancos, sendo hostilizada, agredida, é a catalisadora desse retorno. Manter-se distante do combate seria imperdoável.
Pontos cruciais são o que não faltam ao documentário, pois não faltaram na vida do escritor e ativista James Baldwin, como o debate com o filósofo Paul Weiss em um programa de TV, em que Baldwin expõe o funcionamento do racismo institucionalizado, analisando e decompondo cada argumento de Weiss.
O ontem, o hoje e o amanhã do racismo formam esse panorama de uma América que não reconhece suas falhas, que não enfrenta os males ainda não resolvidos da supremacia branca. Ousar reconhecê-las é um primeiro passo para que a desigualdade se atenue e possa se constituir um horizonte mais próspero e com justiça social para todos. Ainda que em Baldwin houvesse uma melancolia, resultado da desilusão sobre os avanços na questão do racismo, isso não se traduziu em prostração.
“A história dos negros nos Estados Unidos é semelhante a própria história dos Estados Unidos. E ela não é uma história bonita”, sentencia Baldwin. O autor dessa sentença é a força-motriz do documentário, que faz ecoar como um estrondo a necessidade de uma consciência que seja crítica e que não se deixe levar nunca pela apatia.
lara
Eu adorei a crítica e está muito bem feita. Este filme é demais, uma boa produção, com boa trama, já que se trata de uma história real, e com um bom elenco. Recentemente vi um filme da mesma temática, um documentario americano que estreou que se chama Diga o nome dela: A vida e morte de Sandra Bland, fiquei muito impactada com a história. É um documentário muito bem produzido e com uma história impactante demais e que nos faz refletir. Recomendo a todos.
Wuldson Marcelo
Olá, Iara! Obrigado pela leitura! “Eu não sou seu negro” é um filme realmente impactante, ainda mais por partir da morte de três líderes negros assassinados por causa de suas ideias e resistências, para denunciar o modus operandi do racismo na América. Obrigado pela dica! Verei o quanto antes “Diga o nome dela: A vida e morte de Sandra Bland”. Grande abraço!