Dois poemas de Fernando Impagliazzo
Fernando Impagliazzo (Rio de Janeiro, 1990) é graduado em Letras/Literaturas pela UFRJ e doutorando em Literatura Brasileira pela mesma instituição. É autor de Prova das nove (Multifoco, 2014). Colaborou na antologia Tente entender o que tento dizer: poesia + hiv / aids. (Bazar do tempo, 2018). Está soropositivo desde 2009 e pretende abordar o tema no seu próximo livro de poesias: o Promíscuo.
***
SOLO
eu poderia escrever um poema longo
sobre a solidão do homem soropositivo
mas isto seria desonesto comigo
éramos dois, ele tocava a bateria,
e eu, o vocalista e guitarrista,
fizemos sucesso por um tempo
até que o barulho no metal dos pratos
da bateria me entediou, seus bumbos
percebi que algo estava errado
eu poderia escrever um poema longo
sobre a solidão do homem soropositivo
mas isto seria desonesto comigo
o baterista permaneceu ali, no canto
dando ritmo e cor à minha vida
foi quando apareceu um guitarrista
solava bem, quase um Jimmy Hendrix
mas não demorou muito para que eu
desistisse daquele rock overrated anos 60
eu poderia escrever um poema longo
sobre a solidão do homem soropositivo
mas isto seria desonesto comigo
o guitarrista sentou-se ao lado do baterista
deram um beijo, começaram a conversar
sobre a vida, fiquei alegre ao ver aquela cena
foi quando surgiu o tecladista
descabelado pegou o amplificador
e começou a tocar Philip Glass
eu poderia escrever um poema longo
sobre a solidão do homem soropositivo
mas isto seria desonesto comigo
todos os dias quando vejo o baterista,
o guitarrista e o tecladista juntos sentados
se amando, cedo voz ao meu maior orgulho
ter sido o membro fundador desta banda
the Lonely Men’s Lonely Hearts Club Band
que se orgulham de ter tantos homens solitários
ao seu lado
we’d love to take you home with us
we’d love to take you home
eu poderia escrever um poema longo
sobre a solidão do homem soropositivo
mas isto seria ignorar que a carreira de um homem
é sempre do tamanho de um solo.
*
INDETECTÁVEL
1.
Os dedos detectam
todas as coisas:
uma tangerina que se descasca,
um par de seios fartos,
uma glande bem gorda.
Os dedos detectam
todas as coisas:
os pelos do ânus,
ela aberta pra mim,
os espinhos de um abacaxi.
Os dedos são os limites sensíveis do teu corpo.
Melhor dizendo, há coisas
que os dedos não detectam,
teus cabelos, teus olhos, teu nariz
grande e grosso, o nariz
teu membro duro dentro da calça
é impossível compará-los a frutas
(não fique triste por isso:
ser indetectável a si mesmo
teu corpo, afinal, é uma casa
a qual você não penetra com facilidade)
pega os outros pela mão,
descobre a chave do teu corpo
pega teus dedos,
coloca nos pulsos
verifica os batimentos:
sente a madeira estalar?
sente tua polpa render?
sente o sulco se espremendo?
sente pulsar a tua completa infinitude?
nas tuas veias há um ritmo
que diz 0,999…
2.
Quando vou dormir
apoio sempre a cabeça
com a mão direita
os dedos que detectam
todas as coisas,
passam a detectar nada
(não se engane)
formam um estranho
circuito fechado
Inquietos,
meus dedos procuram
o início da progressão
em alguma parte do corpo
Acelerado,
meu ritmo cardíaco
se propaga sem chance
de conseguir me detectar
É com esse arco fechado
que me acalmo todas as noites
3.
Por isso,
pelo cérebro não se deixar
detectar pelos dedos
tenho sempre, todas as noites,
antes de, finalmente, dormir
um inevitável tesão
em sentir meu pulso
4.
O cérebro, afinal, é uma
ótima caixa de prazer mental
na qual os homens comparariam
corpos a frutas?
Criaríamos a Associação de Sexologia-Frutífera Comparada,
iríamos todos a um grande congresso,
preencheríamos páginas e páginas
do Lattes com palestras e eventos
A especialista: uma mulher de trinta anos,
sentada na primeira fileira do evento
come tangerinas com os dedos
enquanto aguarda sua fala
Falaríamos muito
ouviriamos pacientemente
a discussão sobre como as frutas
os sulcos e as polpas tem propriedades
semióticas semelhantes aos corpos
e, nem assim, saberíamos
o que é ser detectado por dedos
5.
Estou em casa comendo bananas,
recebo um telegrama
Antes que eu possa livrar as mãos
da substância viscosa,
ensebo o papel ao descobrir
que fui eleito presidente
da Associação de Sexologia-Frutífera
Comparada
Parabéns, Fernando!
O homem indetectável,
Um indetectável homem que não consegue
sentir a si mesmo
Foi eleito presidente de um associação
composta por uma mulher que come
tangerina com os dedos
lambo nos dedos o sabor doce
banana d’água
será que eles sabem o sabor que ela tem?
6.
A Associação, afinal, não existe
é só um jogo mental comigo mesmo
uma caixa onde eu me enfio fugindo do mundo,
das substâncias viscosas e doces,
esse homem que, não conseguindo
detectar o próprio corpo,
se condecora com próprio título de presidente
de uma instituição que não existe.
7.
Estou na primeira fileira de um evento
sobre como “o despir erotizante das frutas”,
será que descasco tangerinas com rigor
suficiente para ser presidente da Associação
de Sexologia-Frutifera Comparada?
Me lançam olhares de reprovação
Não, evidentemente, não são olhares de reprovação
São olhares de admiração reprimida ao senhor diretor,
Ou seriam olhares de desejo a minha forma pública de descascar tangerinas?
Prefiro ir para casa
comer bananas viscosas e doces.
as bananas são sempre melhores de descascar
porque não demandam muito dos dedos
8.
Quando vou dormir,
apoio sempre a cabeça
com a mão direita,
minha mão esquerda
abraçando o travesseiro
(talvez aqui alguma ausência
de parceiros que meus dedos expulsaram)
sempre a mão esquerda
agora, a mão esquerda do presidente
da Associação de Sexologia-Frutifera Comparada,
os dedos da mão esquerda do presidente
da Associação de Sexologia-Frutifera Comparada,
não, não posso deixar que isso me suba a cabeça
já me bastam os dedos castrados da mão direita
9.
Para me sentir detectável,
todas as noites, eu, o presidente da
Associação de Sexologia-Frutifera Comparada,
apesar de ser destro, me toco, pensando nos dedos da mulher
que descasca tangerina,
os seus dedos nos pelos do ânus,
os seus dedos na glande bem gorda,
imagino seus seios bem fartos,
obviamente um amor proibido, academicamente falando
o desejo me faz querer tirar
a mão direita da cabeça
preciso descascar a casca,
ou melhor, preciso descansar a caixa
vai dormir, senhor presidente!,
você foi deposto do cargo
por desvios de conduta