“Filme de Estrada” – Um conto de Wuldson Marcelo
Filme de Estrada
12h36min. A estrada começa a provocar o tédio. Dia 1 da viagem. Ele já está inquieto, ensaia as censuras que pretende fazer. Ela mal disfarça o peso da companhia sem distrações, uma lástima para a intimidade. As mãos para fora do automóvel para sentir o vento. Só que a sua pele não reage, é pura insensibilidade.
Ele reclama que a poeira ataca a sua rinite. “Quem diabos sugeriu essa viagem? E logo de carro. Puta que pariu!”. Um posto de gasolina. Nada no horizonte. Ela pensa em almoçar. O proprietário do posto recomenda o restaurante de um amigo. Ele considera inaceitável que ela converse com ‘brucutus’. “O homem é um empresário. E, por sinal, delicadíssimo”. Ela reflete sobre o vício dele de chamar todos do sexo masculino de brucutu. Ou melhor, aqueles que ousam puxar assunto ou pedir informação a ela. Já ele se lamenta da mania que ela tem de usar superlativos. “Delicadíssimo, o caralho”.
Tem lagosta no restaurante. Ele se admira, mas aponta que a vigilância sanitária faria estragos na espelunca. Ela imagina que saboreia o almoço na solidão do fim do mundo. “Tagalera maldito”, ela sentencia. “Desce um rabo de galo aí, chefia”. Ele eleva a voz, antecipando o êxtase do primeiro gole. Ela sabe que terá que dirigir. Odeia o volante. “Fazer o quê com um troço desses?”. Ela pega as chaves e o olha de soslaio. Ele debocha: “Está tudo sob controle, amor”.
Ele, meio-alcoolizado, propõe jogos de adivinhação com punição erótica para o perdedor. Ela pratica a arte de “engolir a raiva” em nome da falsa harmonia. O carro desliza no asfalto quente. 16h23min de raios solares e dúvidas. “Você não era assim, até era amabilíssimo. Hoje é essa porqueira”. Verdade inescapável, oculta entre amantes que mal se olham nos olhos. Ele deseja dirigir, assumir o destino do automóvel e correr, fazendo pouco caso dos buracos da estrada. Só que os rombos, as fissuras, as fendas, as rachaduras não podem ser simplesmente deixadas de lado. Irritado, ele grita “Só tem brucutu neste mundo”. Ela não se espanta, não ri, apenas dirigi.
20h23min. Ela para em um motel. Ele se sente impotente, mas quer apostar na macheza de sempre. “Esse homem aqui não nega fogo. Sob hipótese alguma”. Bate no peito, sem revelar a sentença orgulhosa. Ela sabe que o gesto contém a vaidade vigiada dos inseguros. Ela se sente constrangida. Por ele. Ela quer dormir. De preferência, em outra cama, em outra vida. “Durma com os anjos”, falam quase de maneira simultânea. Uma breve recordação, sorrisos escapam, porém, nenhum deles está verdadeiramente lá. Não há viagem. Apenas duas pessoas ocupando o mesmo carro e assistindo paisagens sem significado para elas.
08h47min do segundo dia de viagem. Ele dirige, com atenção e ressaca. Ela pensa em repreendê-lo, mas conclui que não vale a pena. Ele troca as marchas, percebe o gado à frente. Os mugidos se misturam ao silêncio.
A boiada passa. Ele fecha o vidro, liga o ar-condicionado. Ela folheia um livro de Kundera. “Realmente, só há brucutus neste mundo”, ele lamenta, mas já satisfeito por perceber que criara um bordão. É a vez dela se lamentar: “Já pensou alguma inutilidade. Que situação desagradabilíssima! E ainda temos mais 20 horas de viagem”.
A filha os aguarda para o Natal.