Fragmentos de um futuro não conforme – Por Vinícius da Silva e Nicole Froio
No laboratório do tempo, coluna assinada por Vinícius da Silva, as coisas não são o que realmente são (ou que pensamos ser); os sonhos deixam de ser sonhos e passam a ser partes da vida. Nesta coluna, quinzenalmente, Vinícius escreverá a partir da interface entre artes visuais, filosofia e literatura, buscando realizar isto que o escritor chama de “experimentos” (ora textos ensaísticos, ora poemas longos) sobre tempo, esquecimento, futuro, e outros experimentos possíveis para o laboratório do tempo. Nesses encontros, Vinícius mais suscitará questões do que tentará respondê-las, pois é dessa forma que o pensamento atinge o seu nível ótimo de curiosidade para conhecer e acessar as coisas. No entanto, o laboratório do tempo nos desafia a esquecer de tudo, menos de quem somos ou de nossos simulacros; você aceita o desafio?
Vinícius da Silva. Graduando em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2020, da Silva apresenta o Podcast Outro Amanhã, ministra cursos livres sobre o pensamento de bell hooks, Teoria Queer, entre outros temas de pesquisa, e é revisor e atua no setor de Pesquisa Qualitativa da ONG TODXS. Possui experiência e interesse de pesquisa nas seguintes áreas: Filosofia Política, Teoria Queer, Arte Contemporânea, Poéticas Visuais, Teoria Feminista Negra e Artes Plásticas. Site: https://www.viniciuxdasilva.com.br/
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fragmentos de um futuro não conforme
000. começaremos com a seguinte questão: o que significa partir algo ao meio? abandonar o futuro implicaria, necessariamente, na ausência da articulação de uma utopia? quais são os impactos do abandono do tempo? nesse sentido, negamos o linear de uma temporalidade específica, algo que nos aprisiona. amanhã será maior? não queremos mais esperar. pode ser abrigo um futuro que ruirá a qualquer momento?
230. o futuro será garantido pelo Estado? admitir isso seria agarrar-se a um futuro que certamente ruirá, mais cedo ou antes disso. temos insistido que “amanhã será maior”, porém o que virá depois? o futuro chegou e foi destruído. o brasil não é mais o país do futuro (lara ovídio), pois o futuro já não existe mais, embora seja constantemente prometido. a quem se destina o direito ao futuro?
105. seria ético pensar em utopias sob ruínas, utopias em meio à tragédia? pensar em utopia não seria se render a fantasia? pensamos em utopia como se falássemos de algo distante, como se não pudéssemos pensar em dias melhores agora. a utopia pode ser uma estratégia para nos mantermos de pé, hoje, mesmo quando não estamos de pé. o sonho e a utopia são complementares à realidade, à sobrevivência e à cura. a cura pela arte, a arte como mecanismo de inventar sobrevivência.
225. a invenção utopia se dá no presente. afinal, o futuro não é mais o que se localiza à frente, mas na dimensão do desconhecido. buscamos utopias no presente, utopias que não neguem o real, utopias que buscam nos manter vivos em meio à morte. utopias que gritem não vão nos matar agora (jota mombaça). no meio da tragédia, por exemplo, encontramo-nos e construímos pequenos sonhos entre nós, na palavras que trocamos e nos sentimentos que compartilhamos. esses sonhos são quem somos. são parte das nossas vidas. reivindicar isso não se trata de disputar a construção de uma comunidade utópica, inalcançável, mas sim de estabelecer um projeto de justiça social a partir de uma ética da utopia, a qual permite que avancemos coletivamente a partir da constituição de alianças políticas.
119. fragmentos são a linguagem dos seres traumatizados. trabalhar a partir do fragmento é também uma forma de construir (ou organizar) uma outra memória e uma outra temporalidade. não conseguimos organizar nossas memórias a partir do tempo, mas sim a partir dos acontecimentos (sem os quais não haveria tempo). nutrir experiências não conformes nos ajuda a pensar em futuros não conformes. futuros que talvez não se nomeiem como futuro. abrace a si mesmo ou se perca nos braços do mundo. estamos buscando uma integridade irrecuperável.
321. o brasil já não é mais o país do futuro. o único caminho para chegar à utopia é aceitar que os fragmentos não vão ser costurados ou reunidos de forma completa. a condição para a sujeição é a dor. se a dor não movesse o mundo não haveria poesia (bell hooks). muito da nossa busca dessa integridade se baseia na negação dessa dor. será que é possível abolir o mundo? e o que significa abolir o mundo, de fato?
125. a negação dos sentimentos e afetos é cúmplice do privilégio? talvez abolir o mundo implicaria em aproximarmo-nos da dor e não mais negá-la. o tempo é uma espécie de divisor da dor, ele fragmenta a dor. o tempo é uma invenção da modernidade. a modernidade é o boleto que a gente não pagou, pois trata-se de uma dívida impagável (denise ferreira da silva). isso dá origem ao trauma colonial fragmentando a nossa subjetividade. o fragmento deixa de ser a linguagem dos seres traumatizados e se torna o próprio ser traumatizado.
016. como é viver num corpo que é visto como fragmento de um passado que se agarra aos seus pés? ao mesmo tempo, negamos esse passado, negamos confrontar nossa própria dor. é possível pertencer?
2214. quando pensamos no futuro, pensamos no exílio. mas e se o futuro se exilasse, para onde iríamos nós? e se não precisássemos pensar no futuro, poderíamos viver nossos sonhos no presente? não seria possível abolir o tempo e o futuro e o mundo a partir do interrompimento da metrificação do tempo? quanto mais pensamos no tempo, mais o fim se aproxima. queremos adiar ou adiantar o fim do mundo? talvez o que queiramos seja adiantar um fim e adiantar mais ainda um novo começo. enfrentar a dor colonial seria aceitar a abolição do mundo. temos medo de um mundo sem futuro, de um presente sem porvir. torna-se quase impossível pensar no depois do fim. porém, se quisermos viver é preciso abolir. estamos falando de uma abolição necessária à vida.
222. um dos efeitos de uma memória fragmentada é perder-se em meio a tantos cacos, justamente não saber onde cada peça se encaixa. por isso, não faz sentido pensar numa temporalidade linear, mas sim de afetos. a temporalidade sem tempo ainda seria temporalidade? talvez suspender o tempo, na experiência de pensamento de francis wolff, nos obrigaria a abolir o futuro.
2227. afetos. acontecimentos. organizarmo-nos então de acordo com os nossos afetos implicaria na abolição do mundo. para espinosa, afeto é aquilo que aumenta ou diminui a potência de um corpo. encarar a dor também é organizar o afeto. abolir o mundo, encarar o trauma e a dor colonial. nesse sentido, concordamos com helena vieira: sempre associamos afeto a sentimentos, mas o afeto pode ser uma estratégia política. o corpo é a potência em ato capaz de afetar outros corpos.
242. política é o que fazemos em aliança.
739. negar o presente não seria também negar o futuro? porém, negar o presente poderia ser um ato de abraçar a memória. construir a partir das memórias. até mesmo os fragmentos mais partidos podem construir edifícios. partir algo ao meio é uma operação precisa, uma poética do procedimento. nesse sentido, memória é afeto, pois isso pode possibilitar nossa ação coletiva.
405. arte: instância produtora de afetos; uma maneira de abraçar a memória; garantia de manutenção de nossos sonhos; uma forma de estar no mundo.
9521. um nome que é lembrado é um espírito que vive para sempre.
∞. o desaparecimento é uma ideia ridícula que nega a eternidade do afeto.