Geração beat: uma voz que não quis calar – um ensaio de Helena Boreal
Helena Boreal, pseudônimo de Helena de Araújo Barbosa, nasceu em Mauá, SP, em 2001. Atualmente, reside em São Cristóvão e escreve poemas, pesquisa uma coisa e outra que lhe interessa. Cursa Jornalismo, na Universidade Federal de Sergipe, quando consegue acordar a tempo. É Abaporu da vida e das artes em geral. Deve ter alguma conexão metafísica com Drummond e nasceu no mesmo dia que o Jack Kerouac. Ama a poesia maldita e marginal e é fascinada por Sérgio Sampaio. Isso é tudo, pessoal.
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GERAÇÃO BEAT: UMA VOZ QUE NÃO QUIS CALAR
“Lá estavam os loucos, os desajustados. Os encrenqueiros, os que fugiam ao padrão. Aqueles que viam as coisas de um jeito diferente, que não se adaptavam às regras nem respeitavam o status quo”. Eram esses os expoentes de uma das gerações mais influentes da história: a Geração Beat.
O movimento beat emergiu na década de 50, num cenário norte-americano marcado por manipulação social, manobras governamentais e numa sociedade altamente preconceituosa e consumista. Quem não se encaixasse nos padrões sociais estabelecidos (ser heterossexual, branco, classe alta ou média) era bastante marginalizado e à margem da sociedade, essas pessoas passavam a se envolver com negócios ilícitos, como tráfico de drogas, crime e mercado negro (ENTRELEITURAS, 2015). A aparente prosperidade econômica colocava máscaras no rosto assustado de uma sociedade conformista, encobrindo assim a má administração do governo, a discriminação, a exclusão social e a crescente criminalidade.
Como experimentava a era do pós-guerra, nessa sociedade predominava uma forte censura. Na literatura, o padrão era escrever à la Hemingway, ou seja, utilizando-se de uma escrita direta, objetiva, extremamente correta, com pouco espaço ao lirismo. A mídia continuava a lavagem cerebral enquanto isso, influenciando o povo a se tornar cada vez mais opulento à medida que pobre de espírito.
É nesse contexto que surge uma espécie de cultura que se manifesta através do jazz, do bebop. Ao lado dessa cultura marginal havia outro polo da sociedade que também estava insatisfeito: uma parte dos jovens (brancos, de classe média) não via sentido naquela ordem social. Não se sentiam realizados e estavam cansados daquela vida monótona. Dentro dessa cultura marginal eles buscavam um sentido para a vida, em busca de uma descoberta interior. Eles queriam contestar tudo aquilo: era tempo de reivindicar os direitos civis e mostrar que a cultura do outro deveria ser valorizada e precisava de respeito. Entediados, mas inconformados, pretendiam iniciar uma revolução. E foi a fusão dessas duas coisas que gerou a cultura beat (ENTRELEITURAS, 2015).
A filosofia beat era geralmente contracultural, antimaterialista, com foco altruísta, e sublinhou a importância de uma melhoria do ser interior de cada um, acima das posses materiais. Alguns escritores beats começaram a procurar isso em religiões orientais, como o budismo. No âmbito político, eles acreditavam num terceiro caminho – alguns repudiavam a esquerda com a mesma acidez que a direita – pois, para eles, os esquerdistas, apesar de se autoafirmarem progressistas, também tinham alguns preconceitos. Além disso, alguns governos socialistas ao redor do mundo, quando consolidados, tornaram-se totalitários, ditatoriais. Os beats apoiavam também a dessegregação: eram abertos à cultura e arte afro-americana – posição explícita na literatura e gosto pelo jazz (WIKIPÉDIA).
A literatura beat foi marcada por temas muito subversivos à época, contendo obscenidades e contestação no geral. Os próprios autores eram bastante subversivos, marcados pelo hedonismo. Há uma relação muito íntima entre o modo de vida intenso que os autores levavam e suas obras, especialmente por serem autobiográficas. A forma despreocupada e desenfreada com a qual escreviam refletia o modo como se portavam diante da sociedade. E o objetivo de tudo isso os tornava escritores compulsivos – estavam sempre a escrever em algum bloco de notas, num processo de autoconhecimento.
Os beats buscavam o sentido e o êxtase da vida no que faziam – através de viagens (físicas e psicotrópicas) de onde brotariam suas histórias, poemas, crônicas e afins. A inspiração estava no que eles viviam: na maneira audaciosa de misturar literatura e vida. Esses jovens não discerniam erudição, de ruas, inspiração, de texto (ENTRELEITURAS, 2015). Eles eram uma síntese de “tudo ao mesmo tempo”, como diria Jack, em seu monólogo, na mais célebre obra beat, o On the Road: “aqueles que nunca bocejam ou dizem clichês, mas que estão sempre querendo tudo ao mesmo tempo”.
A beat foi uma literatura principalmente libertária (a liberdade da imaginação – no ritmo das improvisações do jazz, a liberdade sexual e o multiculturalismo), mas também altamente crítica. Suas obras expressavam livremente suas opiniões acerca do que havia sido imposto na sociedade. Ao contrário do que constatou a mídia, os beats não queriam representar ninguém além deles mesmos. Com temas impactantes como efeito de drogas e orgias; e uma linguagem que rompia com o estilo convencionado, a escrita beat era repleta de gírias, informal, com frases extensas e fluxo desordenado de pensamento (CULTURA MIX).
Foram eles rebeldes o suficiente para chamar a atenção da mídia com a publicação de Howl (Uivo), poema messiânico do genial poeta Ginsberg, que desencadeou na abertura do movimento. Depois disso, veio a publicação do On The Road, obra de Jack Kerouac, que mudaria pra sempre a cultura norte-americana. Posteriormente, dois anos depois, em 1959, a lisérgica novela Almoço Nu, do junkie William S. Burroughs.
Todos foram publicados pela editora de um grande amigo e também poeta, Lawrence Ferlinghetti. Inclusive, o poema de Ginsberg resultou num processo a Ferlinghetti, acusado de obscenidade. Por isso, sua livraria, City Lights, tornou-se ponto de encontro entre os poetas. A obra On the Road, considerada a Bíblia Hippie, foi o livro mais importante e mais influente da geração beat. Redigido por um Kerouac movido à benzendrina e café (e bitucas de cigarro que ele recolhia pelas ruas!), relata sua viagem de sete anos cruzando os EUA, sem se preocupar com pontuações e parágrafos, em sua maior liberdade de expressão – prosa livre, no fluxo da mente. Não fosse a editora, também o On the Road não teria pontos e parágrafos, pois Jack o escrevia de modo compulsivo, originando a versão original de 94 páginas num parágrafo só. Os protagonistas são os próprios Jack e o louco e inspirador Neal Cassady, interpretando, respectivamente, Sail Paradise e Dean Moriarty.
Todos os personagens do livro são, na verdade, pessoas com quem o autor convivia, mas com nomes diferentes. Neal Cassady era ícone entre essa trupe de poetas, por sua extrema intensidade em tudo: o mais louco dos beats, totalmente entregue aos vícios e mulheres, chegando a roubar carros e executar diversas maluquices. É citado de modo furtivo no poema Uivo, de Allen Ginsberg, pela sigla N.C. nos versos “herói secreto destes poemas, garanhão e Adonis de Denver”.
O On the Road foi uma obra fundamental, que ao lado das outras duas (Uivo e Almoço Nu) promoveu uma revolução coletiva. Instigou a juventude àquele modo de vida e pensamento de maneira viral. A filosofia beat antimaterialista e de introspecção influenciou músicos como Bob Dylan, Janis Joplin e John Lennon; as bandas psicodélicas Pink Floyd, Beatles e The Doors (Jim Morrison inspirava-se nos poemas beats e a prática do uso de psicoativos para compor), The Grateful Dead (Cassady viajava no ônibus dessa banda), David Bowie e Lou Reed, no ativismo LGBT; o The Clash (Joe Strummer chegou a compor um poema com Ginsy e o Ginsy um álbum punk, anarquista).
As importantes questões sociais levantadas nas obras (o apoio ao desarmamento nuclear, ao amor livre, pacifismo, ecologia e multiculturalismo) e a prática ao budismo pelos beats inspirou a juventude que fez parte do Movimento Hippie. Devido a sua atmosfera revolucionária e contestatória, seu posicionamento político anarquista, toda a rebeldia, oposição, insubordinação e protestos, o movimento beat deu impulso ao movimento punk nos anos 70, gerando frutos como o Ramones em Nova York (Joe Ramone, em certo momento de sua juventude, havia sido criticado pelo pai, quando este diferiu a frase “ não criei meu filho para ser um jovem beat maluco!” ), os Sex Pistols e o Joy Division, na Inglaterra. Mais tarde, aparece também no movimento grunge de Seattle, tendo como influenciado Kurt Cobain do Nirvana, grande fã do William Burroughs.
O movimento beat pode ser considerado uma manifestação de ideias desse grupo de jovens que promoveram juntos uma revolução na linguagem e nos valores literários que transformou-se numa rebelião coletiva. Allen Ginsberg, principal poeta, ativista e representante do grupo mediante a mídia, dedicou-se não só a uma extensa obra poética, como também ao ensino da literatura como ato de liberdade político-ambiental. Sobretudo, essas iluminadas almas beats encontraram um jeito de canalizar a voz interior de cada um que se aventurar a conhecê-los. Mais que meras obras, eles deixaram pra sempre a porta da expressão aberta para a próxima geração de escritores. E através de seus versos, uma autodescoberta iluminada.
Seus livros, de prosa poética e substância filosófica, que vai muito além da apologia à libertinagem, retratam o quanto o ser humano pode ser louco e selvagem enquanto simultaneamente etéreo. O beatnismo traz a mensagem da celebração da vida, do presente. Engloba tudo: desde as essências e frustrações humanas mais viscerais até sua inquietação em relação aos moldes norte-americanos e apresenta mentes aguçadas e filosóficas o tempo inteiro a contestarem-se e a buscar uma “dose violenta de qualquer coisa”. Revela também uma esquecida ou talvez perdida paz no espírito, nos levam a atingir o estado de espírito cujo qual eles se encontravam – algo mágico, como um compartilhamento telepático. E por viverem nesse eterno estado de espírito é que estavam fora do padrão social, desalmado.
Como foco literário, há em grande parte das obras beats uma intertextualidade. Eles estão sempre comentando suas leituras, reescrevendo e recriando o que leram. Em todos eles constantemente se observa um diálogo criativo com outros autores. O grupo era inspirado principalmente pelos poetas malditos Rimbaud, Whitman, Baudelaire, Blake. Pelos românticos: Shelley, Pound, Carlos Williams, Hemingway, Charles Olson e até mesmo formalistas como Proust e Céline. Captavam a prosódia dos livros de James Joyce e reproduziam em seus livros.
Para essa legião de escribas não havia fronteiras. Eles não dividiam texto e inspiração. Escreviam sem traves. Sua prosa tinha momentos extremamente líricos. Nesses momentos eles se usavam de imagens, metáforas, comparações e afins. Era bastante característico dos beats escrever com uma oralidade rica em ritmo, de modo que se lidos em voz alta soavam como uma batida de jazz.
Eis agora o motivo da palavra beat. Ela pode significar batida de jazz. O ato de bater (na cara da sociedade). O termo foi atribuído a inúmeros significados: dizia-se ser na verdade uma gíria para oprimido e rebaixado, que caracterizava o submundo dos marginais, onde Kerouac e Ginsberg procuravam inspiração; podia significar até mesmo o jeito estranho como o grupo cultuava o budismo. Mas para Kerouac, aquilo tinha uma conotação espiritual. Em entrevista, ele esclarece que o significado era o ser realmente beatificado, estado de espírito ao qual constantemente se encontravam ao realizar suas viagens. Beat quer dizer abaixo e de fora, mas com uma convicção intensa. Ao explodir o movimento literário, as pessoas haviam absorvido o real significado de maneira distorcida – era a geração de loucos, hipsters iluminados. Beat era a visão que eles tiveram da palavra pronunciada pelas pessoas em noitadas, nas esquinas de Nova York e outras cidades da América, nos passeios pelo centro à noite – foi a visão de desvairados esfarrapados a pedir carona por todo o país. Estava na Igreja a visão do que beat significava: a visão da palavra como ser etéreo, uma verdadeira beatitude (WIKIPEDIA).
A absorção do movimento pela indústria de massa fez dos beats, beatniks – estereotipados e mal interpretados. Houve uma polêmica com “a obscena palavra beatnik”, que era a junção de “beat” ao sufixo russo da Sputnik, fazendo as pessoas duvidarem do sangue puramente norte-americano. Enquanto a palavra beat indicou a contracultura, a atitude e a literatura; o termo comum beatnik era o de um estereótipo encontrado em desenhos animados da mídia, distorcido. Segundo Ray Carney, professor da UF Boston, autoridade na cultura beat, na época, vários jornalistas reduziam o conceito de beat a um conjunto de acessórios tolos e supérfluos: bares, poesia, jargões do “cool, man, cool!”. Mas nunca existiram beats nesse sentido (exceto, talvez, os imitadores da influência). O beatnismo foi um estado de espírito, não a importância com a qual tu vestes, onde moras ou o que dizes.
Temos como obras posteriores, O Apanhador no Campo de Centeio e Into the Wild, e as pérolas poemáticas de Snyder, McClure, Di Prima e muitos outros. O grande poeta Charles Bukowski, que embora não se considerasse beat, foi muito influenciado pela geração beat. O beatnismo se inseriu em desenhos animados como Doug, Looney Tunes e Scooby-Doo. Atualmente, grande parte da cultura pop teve influência beat (TOTALIDADE; WIKIPEDIA).
Alguns livros beats como ON THE ROAD foram adaptados ao cinema por Walter Salles (brasileiro), pelo nome Na Estrada. Alguns outros tiveram a participação do Daniel Radcliffe, caso de Versos de Um Crime e filmes inspirados nos livros homônimos, como Into the Wild e Big Sur (TOTALIDADE; WIKIPEDIA) .
No cartão de visita de “Na Estrada”, Salles tentou responder a pergunta de um jovem sobre onde foi parar essa geração com a morte de seus autores. “Esse garoto se vestia e penteava como queria, era contra a guerra do Iraque, se interessava por ecologia e budismo… Fiz a ele a mesma pergunta: onde está a geração beat? Está dentro dele … Não é fácil explicar isso às pessoas. Mais que isso, não é necessário” (UOL).
Foram, então, esses os nossos heróis, lutando infatigavelmente por meio da literatura por uma sociedade mais aberta e apaixonada pelo primor que é a vida. Jack certa vez escreveu sobre esses jovens beats: você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los, porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para frente. E, enquanto alguns os veem como loucos, nós os vemos como geniais. Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que realmente o fazem.
Referências Bibliográficas:
– Uol: Conheça os principais autores e obras da geração beat, tema do filme “Na Estrada” e Geração Beat.
– Cultura Mix: O que Foi a Geração Beat?
– Wikipédia: Geração beat.
– Totalidade: O que foi a Geração Beat e como ela influenciou as gerações.
– Superinteressante: O que foi a geração beat?
– Cidadão Cultura: Movimento da contracultura hippie e a geração beat.
– Entreleituras Booktube (canal no YouTube) – Geração beat: de Allen Ginsberg a Bukowski?