“História do futuro, por Paul Shelley”: um conto de Rodivaldo Ribeiro
A Ruído Manifesto vai dedicar o dia de hoje a publicar contos e outros textos de seu eterno criador, Rodivaldo Ribeiro, de quem nos despedimos ontem. “História do futuro, por Paul Shelley” foi publicado na curadoria “Pandeprosa: o que maio nos reserva?” (https://ruidomanifesto.org/pandeprosa-o-que-maio-nos-reserva/).
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História do futuro, por Paul Shelley
Contam que certa vez, numa aldeia perdida no tempo — alguns poucos se iludem sobre passado e futuro ainda, já que o presente, se sabe há muito, sequer existe — correu a notícia da chegada de um menino reconhecido como sábio por 11 povos. Diziam ser ele um escolhido de outras eras agora renascido; a visita, entretanto, era de conhecimento de alguns poucos. E para esses, só havia um problema, a idade.
Sua fama lendária superava à larga os 13 verões de existência, daí a pequena emenda metafísica de ser ele alguém que vivera antes de todos e que fora redivivo em símbolo de esperança. Tudo porque convencionou-se, por obra dos velhos sábios das outras aldeias, que ninguém podia acumular tanto conhecimento em tão pouco tempo, e também por ser de muito melhor tom e agrado de toda a civilização que assim o fosse — afinal, ninguém quer crianças ensinando anciões, ditando a economia ou fazendo ruir junto qualquer ideia de sociedade pervertendo outros jovens.
O pacote inteiro — o muito dele falarem, as multidões a segui-lo, a santificar ou amaldiçoar, conforme o lugar de onde vinham — que trazia consigo era causado por uma ideia muito simples. Ele centrava seus ensinamentos em uma única grande verdade: só se aprende a viver amando, e não temendo, a morte e sua ideia de apagamento.
“Ao entendermos que o cimento de toda obra, mesmo das maiores, é a vaidade, aprendemos junto e imediatamente quão inúteis somos à Terra. Como marcas para viajantes deixadas no chão do deserto”, costumava repetir a si e a todos o menino que, ninguém sabia, passava noites em claro com medo de não conseguir falar, de não o entenderem ou simplesmente de não gostarem dele, visto ser, enfim e à parte o que pensavam os adultos, só uma criança.
No meio da jornada, como era hábito acontecer, viu-se açoitado de repente por sua velha conhecida ansiedade de nenhuma origem aparente. Reação e remédio automáticos, forçou o cavalo ao estribo, se adiantou e chegou à nova vila um dia antes do previsto, próximo ao amanhecer. Tanto melhor, pensou, pois haveria tempo para revisar o sermão agora aguardado por todos — pombo correio ou WhatsApp, que diferença faria? A fofoca é universal e o isolamento de todos, a lei.
“Se de manhã o caminho apontado parecia o mais promissor, à tarde percebemos o tamanho do engano: não vai dar nem pra voltar, porque o vento e a areia já o apagou. Resta então enfrentar a noite. E só se sobrevive às trevas com a ilusão de, no novo dia, fincar mais fundo as estacas e sinais e, enfim, definir a rota. E tudo é novo engano. Não há rota, só a escolha entre seguir caminhando e adiar o soterramento ou esperar a natureza trabalhar e ser enterrado ali mesmo. A isso chamamos liberdade: o direito de, às vezes, adiar o inevitável e outras vezes abraçá-lo. Quem nasceu há 5 mil anos ou vai ver a luz daqui a 100, pouco importa, o desfecho é e sempre será o mesmo”, disse, orgulhoso, ansioso e de olhos fechados, contando os 10 segundos habituais de silêncio que se seguiram aos gritos e palmas nas outras 11 vezes.
Mal desceu da pedra onde havia subido para o tal discurso, foi pego pela polícia local, que não teve tempo de ouvir explicação nenhuma, porque o garoto foi arrancado dali pela multidão de tal sorte que não durou nem cinco minutos até rasgarem seu último pedaço. Um silêncio se sobreveio à gritaria do linchamento. Explicação alguma houve.
Só um detalhe havia escapado ao pobre menino-herói antes de chegar àquele lugar. Ele não sabia que os políticos, empresários e demais conselheiros haviam acabado de ser convencidos pelo rei a aprovarem um pesado aumento de impostos para construção de três pirâmides e uma estátua gigantesca como nunca se vira na história de nenhuma civilização jamais conhecida.
O povo, inicialmente relutante, enfim acreditara no carisma divino de seu regente. Tudo ao preço de muito suor e sangue, mas o prêmio compensaria o esforço ao tornar perpétuos todos via tais grandiosas marcas eternas no tempo. A única condição era escrever ao pé da estátua o nome do rei, gritado a plenos pulmões até o fim pelo menino: “Ozymandias, Ozymandias”.
Andreza
Epifania.