Isto não é um joker – Um conto de Wuldson Marcelo
Wuldson Marcelo. Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea (UFMT) e graduado em Filosofia (UFMT). Autor dos livros As luzes que atravessam o pomar e outros contos (Editora Carlini & Caniato, Cuiabá, 2016), Obscuro-shi – Contos e desencontros em qualquer cidade (Editora Carlini & Caniato, Cuiabá, 2016) e Subterfúgios Urbanos (Editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2013). Além disso, é organizador (com Jana Lauxen e Cinthia Andressa de Lima) da antologia de contos e poemas Beatniks, malditos e marginais em Cuiabá: Literatura na Cidade Verde (Editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2013). No audiovisual, tem as seguintes obras: Aqui jaz a melodia (MT, em pós-produção), curta-metragem de ficção, em que atua como codiretor (em parceria com Juliana Segóvia) e roteirista, A garota que existiu dentro de um mistério (MT, em pós-produção), curta-metragem de ficção, em que atua como codiretor (com coassinatura de Carol Damasceno) e roteirista, Se acaso a tempestade fosse nossa amiga eu me casaria com você (MT, 2015), curta-metragem de ficção, em que atua como codiretor (em parceria com Felippy Damian), que recebeu o Prêmio de Melhor Filme Independente do Júri Popular na 14ª Mostra de Audiovisual Universitário da América Latina (MAUAL), em 2015); Primeira morte de Pedro (MT, 2015), curta-metragem de ficção dirigida por Felippy Damian, do qual é corroteirista.
Além de ser assistente de direção nos curtas-metragens A velhice ilumina o vento (em pós-produção), dirigido por Juliana Segóvia, e Alheio (em pós-produção), que tem direção de Valdecy Azambuja.
Curador e organizador das edições 2017, 2018, 2019 e 2020 da Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso, e do Afrocine, em 2021, ambas idealizadas e organizadas pelo Coletivo Audiovisual Negro Quariterê, do qual é membro desde a sua fundação, em 2016.
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Isto não é um joker
Acende um cigarro. Tosse, traga devagar. Então, essa é a realidade? Um perdedor de classe. Ou só mais um arauto do desperdício. Está pronto para a sinfonia do caos que o impulsiona para frente. Não pode mais parar. Quem cruzar o seu caminho estará declarando guerra.
Trinta e sete anos, sessenta e três quilos de uma magreza infeliz, um cachorro mal cuidado e algumas dívidas acumuladas. Meio-homem, meio-porrada da vida. Um 38 e muita cachaça. O pai disse antes de partir, “fica aí com esse demente”. A mãe chorou e se forjou no desprezo. Largado, solto e abandonado. Moleque sem rumo, feito para ser perdido na sarjeta ou na vala.
Mais um cigarro, desta vez fumando sem problema. Pulmões só o ódio e estragados, semelhantes a um depósito de pó de carvão. Vida ingrata. Um 38 e algumas lamúrias. Sabe que não deve tremer, por isso entorna outra dose de cachaça. Guarda a garrafa no bolso, meio-envergonhado. Quem cruzar o seu caminho estará declarando guerra.
Um 38 e o inimigo avistado. Entra no metrô. Enfim, pisa o palco chamado de espetáculo dos horrores. Não se admite desistências ou arrependimentos. Diante dele, o que a sociedade considera como homens de bem, exemplos de sucesso, mas que, em sua cabeça, não passam de vermes a serem abatidos.
Dois engravatados riem de uma piada sobre seios caídos, apontando para uma mulher ao lado, que se constrange automaticamente. Tosse, pensa em dar mais um gole na aguardente. O paletó o sufoca. Sussurra, “Não é peito caído, é ptose mamária”. Ninguém ouve. Ninguém nunca o escuta. O 38 exige sangue, mas aguarda pacientemente no coldre. Quem cruzar o seu caminho estará declarando guerra.
Há uma algazarra no vagão, com crianças brincando de gritar e a professora pedindo silêncio. Como disparar contra o rosto de dois homens pútridos com infantes tão perto? Reflete e começa a suar. Não pode e não irá vacilar. Chega de covardia, de paralisia, eu vou matar esses miseráveis, confirma para si mesmo a sua decisão.
Uma estação. Duas estações. Está óbvio que a viagem começa a se tornar ingrata, assustadora, a mão treme levemente. Decide não beber, tem medo de passar vergonha na frente das crianças, de verem o recipiente plástico em que está a cachaça. O que tem de mais dar uma bicada no goró? Foda-se este bando de pentelhos, revolta-se em silêncio. A mulher se fecha vendo os dois filhos do capitalismo ridicularizarem seus seios. O 38 começa a lamber os lábios, sentindo o gosto de sangue e de carne queimada. Quem cruzar o seu caminho estará declarando guerra.
Por que o pai foi embora? pensa enquanto o metrô quase lotado avança tarde adentro. Se encontrasse o velho, deixaria o 38 ser o seu interlocutor. Bang bang! Bang bang! Bang bang! No seu interior, ri histericamente. O olhar de louco… duas pessoas notam as órbitas saltando, a pele vermelha, da raiva crescente, o vômito entre os dentes. Menino molenga do caralho, diria o pai. Os inimigos à frente.
O metrô é a amálgama entre a lucidez e a insanidade de um bicho enjaulado. O 38 já cuspindo sua ira, querendo testemunhas de seu apogeu. E as crianças? Mais um trauma nesta ilha do consumismo, inferno dos que já perderam a inocência. A mãe era inocente, tem certeza. Não tem? Escuta um uivo. Não avista um cão doido, somente homens se reduzindo à infâmia, lançando jargões de bem-sucedidos, protegidos pelo esforço maquinal disfarçado de merecimento. Quem cruzar o seu caminho estará declarando guerra.
Sorri para morte, o 38 já em frenesi. As crianças se preparam para correr quando o modal metroviário parar. A professora tenta organizar a desobediência infantil. Os dois executivos paqueram uma morena de estatura mediana, rabo de cavalo e lábios rubros, que parece mais preocupada com o horário. É hora de matar ou morrer.
O líquido na garrafa plástica balança, as mãos tremem por um incentivo alcoólico. O último, o derradeiro gole. Sente o bafo do desassossego e as unhas de todas as misérias da vida cravadas em suas costas. Os engravatados ali, a cinco passos de distância. Lembra-se dos tumultos em família, os segredos, o bullying, os brinquedos incinerados na funerária do avô. Uma vida de excomungado, de execrado. Quem cruzar o seu caminho estará declarando guerra.
Na quinta estação, o metrô para. Os engomadinhos, protótipos de magnata, encaminham-se para a saída. O 38 bufa, geme, baba. É agora ou nunca. As crianças correm, como alucinadas. Ninguém tem autoridade sobre seus desideratos e traquinagens. Apesar de eufórico, respira de maneira tranquila. Alguém irá pagar, eis a sentença. A mão direita se agita em direção ao coldre.
As crianças ainda descem do veículo, e quando pronto para o ato mais formidável de sua existência, um idoso tromba nele. Neste instante, uma sacola repleta de ovos pinta o chão de amarelo. Alguns sapatos se sujam. Você está bem meu filho?, pergunta o homem com sincera preocupação. Um tapinha no ombro e a vida segue com um afago de um desconhecido. Quem cruzar o seu caminho estará declarando…
Ao olhar rapidamente em volta, tem novamente os dois futuros crápulas mortos em seu radar. O 38 esperneia, quer fazer aquilo para qual nasceu. Mas, quando tateia o coldre, as crianças o impulsionam um pouco mais para frente e riem. Vai tio, vai!, exigem se divertindo, gargalham com alegria. Atônito, segue o fluxo. A mão já se afasta do tiro fatal. Quem cruzar o seu caminho estará…
É preciso ter coragem e se desvencilhar dos pequeninos. Faça acontecer, berra para si mesmo até atingir o âmago. Os alvos já estão descendo do trem. Não pode mais esperar. Quando engole com força a própria saliva, percebe que a mulher com ptose mamária sorri e parece agradecer a sua indignação, como se acreditasse em um ato de solidariedade de sua parte. Sem jeito, balança levemente a cabeça. Quem cruzar o seu caminho…
E com as portas dos vagões se fechando, ou se embarca ou se é sugado pelo ostracismo. Agora os rufiões da bolsa de valores estão a sua frente. Pega o cano e estoura os miolos desses filhos da puta, grita a voz estridente em sua cabeça. Antes do gesto definitivo, a morena paquerada pelos jovens herdeiros do desejo de riqueza, sorri e diz bom dia para o espantalho imóvel diante dela. Aos poucos, deixa a mão descansar na perna direita. Quem cruzar…
Nem tudo está perdido, pois pode correr pela estação e provocar pânico até matar os dois desgraçados. Não há mais mulheres constrangidas, crianças alvoraçadas, homens solícitos ou beldades. Somente a vontade de exterminar a ignomínia da face da Terra. Corre com o 38 em punho, lava com sangue toda essa imundice, chega de ser humilhado, tomar soco toda hora, exige o revólver ganhando vida própria. Uma mão em seu ombro o resgata do delírio. Um funcionário do metrô oferece ajuda. Está perdido, senhor? A pergunta simples o abala, parece gentileza gratuita. Talvez possa se acostumar com isso. Quem…
O 38 incomoda no coldre. A cachaça na garrafa plástica não ajuda contra o calor. A raiva começa a se dissipar. Amanhã ou depois, ele fará a roda do destino girar ao seu favor. Não sobrará viva alma para contar a história. Bang bang! Bang bang! Bang bang!
(Foto: Stan Raucher).
Ana Souza
Amei toda a publicação do ruidomanifesto. Ia dizer do meu agrado sobre o Boy de 5a., da Nariel. ….tratando-se de conto depoimento sobre vivências próprias. Já a que fala de Lésbica, também autobiografia é muito bom.
As crônicas de ficção não me agradam tanto.
Parabenizo o ruído por tantas excelentes matérias. Vale à pena ler.
Nariel Iatskiu
Muito obrigado Ana Souza, fico muito contente com o seu comentário. Hoje tem texto novo.
Aproveita e venha conhecer as lives do @boydequinta, às 21 h. Hoje tem!
Aqui as histórias são reais, pessoais e totalmente transferíveis já que eu conto as minhas histórias, mas posso contar as suas também!
Um beijo e obrigada!
Nariel Iatskiu
Corrigindo, o perfil é @narieliatskiu!