Lábios
Entre aquelas imundas quatro paredes eu desenhava meu mundo, minhas mulheres, suas curvas, cores, olhares, folhas, panos brancos e lençóis de seda.
Borrava a imagem, tropeçava em minha própria criação, atravessava a porta e comia um pedaço de qualquer coisa, só para conseguir continuar em pé desenhando, pintando, colorindo e contornando. Ia de vez em quando na padaria da rua paralela a do meu apartamento, comprava alguns pães e depois passava na cachaçaria do lado e pegava um litro de gim.
Em um desses meus passeios atravessei a rua e dei de encontro com olhos tão marcantes que perdi o ar ao mergulhar neles, castanhos muito escuros, grandes e fitantes, murchei o olhar até me deparar com lábios vestidos em um batom vermelho muito forte, também grandes e muito bem contornados, como se a mão de quem os desenhou tivesse escorregado a cada traço, o cabelo esvoaçava e cobria uma parte do rosto ao ser levado pelo vento, pequenos bocados de cabelo voavam com a brisa forte que passava na rua.
Nossa…. Eram dourados e cintilavam ao dançar no vento. Ela usava um vestido azul marinho que acabava um pouco antes dos joelhos, duas pequenas rodelas brancas que terminavam em lindos pés pequenos, o vestido cobria seu colo e deixava pequenas sardas aparecerem aos poucos com o movimento do andar.
Nem notou que eu existia, magricela do jeito que sou, com esse olhar triste e andar arrastado, talvez nem tivesse visto que eu passara rente ao seu ombro, talvez nem tivesse sentido o calor dos pães frescos que eu comprara ou o barulho das minhas chaves que batiam na garrafa de gim.
Aquela hora senti uma vontade imensa de pintar, sai tão ligeiro que tropecei nos próprios passos ao subir a calçada, entrei no apartamento, peguei uma tela virgem e comecei a rabiscar seus lábios, lindos, tentadores e macios. Coloquei algumas cores no canto do cavalete e comecei a contornar a tela, fiz um retrato daquele lindo rosto magro com uma parte do colo a mostra e a parte direita do vestido escorregada na pele sedosa. Desenhei também um pedaço pequeno do seio esquerdo à mostra. O retrato acabava em suas costelas e eu não conseguia deixar de me fascinar por aqueles lábios.
Todos os dias ia até a padaria e me encontrava com aquela obra-prima, que vontade eu tinha de tocá-la, sentir o cheiro, beijá-la, sempre com aquele batom vermelho e um vestido até os joelhos. Em dois meses o quadro estava pela metade e eu sempre tinha uma pausa às três horas da tarde para comprar meus pães, meu gim e ver minha inspiração. Algumas vezes ficava nos bancos da cachaçaria esperando ela passar só para atravessar a rua rente àqueles ombros e sentir o seu perfume. Tinha cheiro de erva-doce e seu cabelo, lavanda, todos os dias carregava uma bolsa preta perto do corpo e à noite eu abria a janela e a observava voltar para casa. No mesmo horário de sempre, atravessava na mesma altura da rua, e sempre olhava para a esquerda primeiro, a cada dia que passava eu ficava cada vez mais excêntrico em pintá-la.
Deixei os lábios para o fim, pintei os ombros brancos, os seios rosados, o vestido azul marinho, os cabelos dourados, os olhos fundos e os lábios… eu tinha de deixar para o fim, precisava beijá-los antes de ter tinta.
Em uma sexta-feira contornei os lábios com a tinta cor-de-pele, e senti que chegara a hora de colori-los, peguei minha maleta de bisnagas e procurei desesperadamente pelo vermelho mais vivo que tivesse, eu não achava nada, nenhuma bisnaga de vermelho, apenas alguns mortos e feios, puxando o alaranjado ou o cor-de-rosa, até espremi uma bisnaga e adicionei óleo para ver se ficava a cor perfeita, mas nada, eu sabia que isso iria acontecer. Fui até a loja de tinta e procurei por bisnagas de cores novas, nenhuma me interessou. Eu passei o dia escolhendo cores e nada, nenhum vermelho, já era dez horas da noite e eu vagava a rua com uma sacola tendo dois tubos de cores novas e feias. Me apressei ao lembrar que daqui a pouco ela iria passar pelo apartamento. Sai correndo com a sacola batendo em minha coxa e subi as escadas desesperado, tive uma grande ideia naquele momento. Fui até a janela e fiquei esperando-a ansioso, já conseguia vê-la virando a esquina, fui rapidamente até minha gaveta e peguei um canivete que comprara na cachaçaria, desci as escadas e corri sorrindo de encontro à ela, um pico de adrenalina atacou-a e rapidamente quis gritar, mas eu era louco demais para agir sem rapidez, em um súbito já estava com uma mão tapando seus lindos lábios e a outra segurava seus braços finos por trás de suas próprias costas, empurrei-a até a porta do apartamento e ali levantei a mão que segurava seus braços, em um movimento concentrado enfiei o canivete em seu pescoço e afundei até sentir o osso da coluna encostar na lâmina e fui deslizando até cortar o garganta, o sangue jorrava na calçada, aproveitei que já estava desacordada, provavelmente morta e apertei seu pescoço que cuspia cada vez mais um vermelho perfeito, juntei as mãos e consegui uma boa quantia de sangue, subi ao apartamento e despejei no canto do cavalete, peguei um pincel fino e comecei a contornar os perfeitos lábios, aquele sim, era o vermelho perfeito.
No outro dia vasculharam meu apartamento e me levaram preso ainda sujo de sangue, pois adormecera sem tomar banho aquela noite, constataram que aquele sangue era da moça morta em frente ao meu apartamento e fui acusado de assassinato.
Eu não fiz nada demais, só queria uma cor diferente para o meu quadro e com certeza aquele vermelho era cheio de vida.