Quatro poemas de Laís de Aquino
Laís Araruna de Aquino nasceu em 1988, no Recife, onde vive. É autora de “Juventude” (Ed. Reformatório, 2018), ganhador do Prêmio Maraã de Poesia 2017.
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AS MEMÓRIAS INVISÍVEIS
caminhas pelas estradas polvorentas da tua memória
recebes o vento pelas costas
algum sopro veio do mediterrâneo e tem a secura do deserto
pessoas cruzam e desaparecem para nunca mais
estás sob o sol asfixiante de junho à esquina da Calle Evangelista
ou passeias no Luxemburgo sob um guarda-chuva chinês
foi este ano ou o passado ou uma década atrás
(agora já contas as décadas)
mas os nomes traem as coisas
falta-lhes o excesso a mancha a impureza
os nomes têm a textura derruída da ausência
e a sua lâmina, uma ponta cega encardida pelo tempo
a Rua da Aurora no começo de uma tarde em agosto
não é a Rua da Aurora no começo de uma tarde em agosto
é também o teu ser precário sobre o Capiberibe veloz
e os quadros e arcos das pontes na extensão do azul
sem os nomes as coisas dormem no lago universal
do esquecimento e misturando-se às águas e às algas
destituem-se pouco a pouco como as margens de um rio
tragadas pela correnteza
chamá-las porém não lhes devolveria a face
(vulto que se perdeu ao virar a esquina)
cada coisa porém guarda o seu secreto nome
sob a arquitetura inviolável de um momento extinto
a poesia é – talvez – a tentativa de construir
para esse nome – uma esfinge à luz do dia
*
REITERAÇÕES SOBRE UM TEMA
o vento no canavial
as bandeirinhas de Volpi
os leões que Hokusai desenhou todos os dias
por 219 dias até morrer
a forma não se atinge nunca
na reiteração das coisas no tempo
as coisas – elas mesmas
são outras e tu
outro és
e o café as camisas brancas o assoalho da casa,
o qual pisaste e tornarás a pisar,
numa configuração nunca idêntica,
porque a madeira desbota e teus cabelos vão a cinza
viver – eis a fissura
é estar inacabado até o fim
*
ENSAIO SOBRE O QUE RESTA
Freud diz que a humanidade sofreu três feridas narcísicas
com Copérnico, a Terra, nossa casa, deixou o centro do universo
com Darwin, a evolução substituiu a descendência divina
e, de volta a Freud, o inconsciente foi o bárbaro da razão
O homem perdeu a imagem arquetípica do homem no mundo
o céu estrelado, que constituía uma morada
ou uma lei, se abriu para a contingência fatual dos astros
a semelhança do filho à imagem do Pai
resultou apenas escritura e esta, um dos léxicos da História
O céu não configura mais um teto
a gênese, não mais uma raiz
e o caminho destituiu a razão
No centro de lugar nenhum, ganhou o homem
a liberdade de ir ou estar à sorte do nada
e de ver no espaço – o vazio
os puros horizontes de cor de Rothko
a ruptura da forma para além da abstração
E a ideia da pura página,
liberta para sempre do signo, desprende-se
da iminência do lírio, da bruma ou da neve
Sem invólucros, meu filho, inspira –
profundo é o ar e a experiência
incomunicável
Inspira profundamente a liberdade do que nos resta –
a plenitude do vazio
*
ENCARANDO O SILÊNCIO
(A partir de P. Auster)
esta paisagem, os morros verdes,
o céu parcialmente azul
pairam ante o olho nu
com sua textura fechada
a que palavra alguma dá a face
aquilo sobre que te direi já não será
o que está aí, na manhã indiferente
ao anseio de dizer –
sobre a solidez suave deste verde
e por cima deste verde um azul conspurcado
de nuvens e poros,
como um mar invadido subitamente
de espuma
no balé livre das árvores,
o dia deslizará em direção à noite
eu deslizarei em direção à noite
mas a palavra não é uma estaca
no decurso do tempo –
é uma via franqueada
ao que ainda não existe mas está lá,
prestes a dissolver-se como uma vela
que o vento reflui
pois tudo consiste nisto, na compulsão
de dizer
não o que o dia silenciosamente guarda
na sua esfinge desde sempre aberta
mas dizer a experiência única, solitária e abissal,
de que saltamos para a palavra, revolvendo
o enxame de asas e caos, revolvendo
mais fundo ainda, sob o excesso
ou o vazio, o silêncio esquivo
e crepuscular,
revolvendo, no mais fundo
e derradeiro, o espaço
anterior ao silêncio,
onde me encontro