Lâmina afiada, crânio de cavalo e outros desastres humanos – “A Equinidade” – Por Ariadne Marinho
09 de dezembro de 2020, cabeças de cavalos são encontradas em uma área alagada no Bairro CPA III, em Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. O local fica próximo a uma estação de tratamento de esgoto.
Uma varredura no local, realizada pela polícia, não trouxe a público nenhum vestígio do resto dos corpos dos cavalos. A suspeita é que os equinos foram mortos para produção de embutidos e carne seca para comercialização.
“Cemitério clandestino de cavalos”. É bizarro, absurdo e cruel. Vários crimes podem ser elencados. O principal: o assassinato desses animais.
Essa antologia virtual da Ruído Manifesto pensa esse caso inusitado e brutal, seja tratando diretamente do assunto, seja usando-o como pano de fundo para histórias tão cruas e incomuns.
O que há de inaceitável e surreal nesse fato é uma convocação à escrita, e a literatura está sempre alerta para dar vazão ao estranhamento, às indagações e à indignação que nos impulsionam ou assombram.
Bem-vindos à série de contos Lâmina afiada, crânio de cavalo e outros desastres humanos, com curadoria do nosso editor Wuldson Marcelo.
O terceiro conto da antologia é da escritora e historiadora Ariadne Marinho.
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A equinidade
O suor, a quentura, as palpitações, uma gritaria, a violência, o medo, o fedor, a lama e a escuridão. Ele se escondia nos bueiros, era a caça de uma multidão raivosa que buscava vingança e dor. Pelos bueiros, becos, ruelas e brejos conseguiu fugir. Era velho, sentia o cansaço nas pernas, no corpo, mas corria. Tinha medo, queria se manter vivo. Era obstinado.
O forasteiro do Norte chega em terras cuiabanas. Sempre nas sombras, evita ser visto. Tem como companheiro e comparsa um grande chapéu de palha, que oculta sua identidade e o protege do sol causticante da cidade em brasa.
Torna-se carroceiro. Vive dos restos, do entulho e do lixo de outras pessoas. Sofre a irascibilidade do trânsito caótico da urbe. Cotidianamente é agredido por ser velho e subalterno. Retruca a opugnação nas chicotadas em seus animais, os cavalos que puxam a sua carroça, os cães sarnentos que o acompanham. Ciclo de violência rotineiro composto por pessoas, cavalos e capital.
O estrangeiro torna-se benquisto por outros carroceiros igualmente velhos como ele. Sempre reuniam-se num bairro distante, na borda da cidade, zona fronteiriça, periférico dos periféricos, rua de terra batida, esgoto correndo em céu aberto, meninos soltando pipa ou chutando bola com os pés enlameados, cachorros esquálidos bebem a água que se acumula em buracos formando poças. Eles tomam corotes na sombra de uma mangueira, luminosidade irradia, mormaço, jogam conversa fora, contam causos, revivem lembranças da juventude, mentem. A maioria deles nunca saíra de Cuiabá, a maioria deles nunca viera de lugar nenhum. O forasteiro, sorridente e calado, tem lampejos de um tempo em que sua vida era boa. Toda vez que bebia aflorava as lembranças de outros dias, em outro lugar.
Ele atarraxava o moedor de carne de ferro fundido em sua grande mesa, em seu barraco antigo. A cozinha era do lado de fora, tinha como composição cozinha e varanda. Admirava seu terreiro, não tinha vizinhos, estava constantemente só. Naquele espaço passava grande parte do dia, apenas os dias, porque as noites estava a perambular pelas ruas. Fazia salgado por encomenda. Seu carro chefe eram as coxinhas de carne moída.
Certa madrugada, não consegue ir trabalhar. Sofre de dores e mal-estar, resultado da composição etílica de 40% de graduação alcoólica, ingerida na tarde anterior. O barulho da ambulância, o caixão, o luto. Dois colegas de carroça e de pinga se vão. Mais uma semana, mais um velho frentista desencarna. Assim, vai finando-se um por um os velhos companheiros do forasteiro nortista, caindo como moscas no mel envenenado, uma grande praga que consome os charreteiros idosos. Amedrontado, tomado de pavor, quer mais uma vez manter-se vivo. Quer mais uma vez enganar a morte.
Ele herda os animais decrépitos dos falecidos amigos e então torna-se criador de cavalos desdentados, cadavéricos, deteriorados pelo tempo e uso. O estrangeiro mantém o hábito da insônia, mas agora não vaga pelas ruas. Toma café com corote, observa os animais, equinos que se abarrotam em seu estreito quintal. Entre a lama, a merda e o mato. Odor insuportável ao meio dia, um cavalo morto entra em estado de decomposição. Ele pensa e rememora dias não tão distantes.
Durante seus passeios noturnos, não raro encontrava uma companhia amorosa de volta para a casa. Gostava de diversificar os lugares, conhecer pessoas novas. Apreciava o fresco das carnes femininas, masculinas, não binárias. Gentil, de poucas palavras, mas não era amante. Era um degustador. Usava a boca e os dentes para saborear o gosto humano, alquimista na arte de cozinhar, de moer, um a um, as suas companhias. Compartilhava com o mundo uma iguaria de sabor sem igual. Suas apreciadas coxinhas. Sente saudades do gosto da carne. Quando foi descoberto, fugiu. Se escondeu da fúria de seus apreciadores, clientes e familiares daqueles que viraram seu principal ingrediente. Assim, chegou na ex-cidade verde.
Agora tenho este corpo velho e decadente, foragido, forasteiro. Não posso perecer. Ainda não. O sol, os entulhos, os restos, o lixo. Derruindo mais e mais a minha existência. Equinos fedidos e barulhentos, provocando, rindo, zombando. Preciso livrar-me deles. O que fazer? Cheio de raiva, parte para cima dos animais. Nesse momento tem uma epifania! Dias depois, empresta de alguém a bicicleta e a pequena churrasqueira. Monta um ponto de churrasquinho na rotatória da conhecida avenida das quatro pistas. Um cartaz escrito à mão: espetinho só 1,50. No som automotivo ao redor toca um lambadão, embalando suas vendas. Seu consumidor mais fiel, um homem alto, com óculos grossos, poeta, exclama com certo lirismo: “Xô mano, seus espetinhos são os melhores da região! Eu vou escrever um conto sobre isso”.
* Ariadne Marinho, historiadora. Estudante de doutorado, organizou ao lado do Thiago Costa o livro Jardineiro de Napoleão (Curitiba, 2019). Eterna apreciadora de Dionísio e Tom em sua vida.
(Capa: Horse and Rider, de Luciano Miori).