Lâmina afiada, crânio de cavalo e outros desastres humanos – “Ontologia do enigma” – Por Thiago Costa
09 de dezembro de 2020, cabeças de cavalos são encontradas em uma área alagada no Bairro CPA III, em Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. O local fica próximo a uma estação de tratamento de esgoto.
Uma varredura no local, realizada pela polícia, não trouxe a público nenhum vestígio do resto dos corpos dos cavalos. A suspeita é que os equinos foram mortos para produção de embutidos e carne seca para comercialização.
“Cemitério clandestino de cavalos”. É bizarro, absurdo e cruel. Vários crimes podem ser elencados. O principal: o assassinato desses animais.
Essa antologia virtual da Ruído Manifesto pensa esse caso inusitado e brutal, seja tratando diretamente do assunto, seja usando-o como pano de fundo para histórias tão cruas e incomuns.
O que há de inaceitável e surreal nesse fato é uma convocação à escrita, e a literatura está sempre alerta para dar vazão ao estranhamento, às indagações e à indignação que nos impulsionam ou assombram.
Bem-vindos à série de contos Lâmina afiada, crânio de cavalo e outros desastres humanos, com curadoria do nosso editor Wuldson Marcelo.
O conto seis da antologia é do historiador Thiago Costa, que nos apresenta uma história contemplativa e simbólica.
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Ontologia do Enigma
A ontologia nada mais é que a interpretação da nossa condição ou situação, já que o ser não é nada fora do seu “evento”, que acontece no seu e nosso historicizar-se (Gianni Vattimo, ano de 1996 [1989], p. VIII).
Bem-aventurados os que seguem no caminho dos porcos. Oh! Grande Beemote. Enorme Belial. Implacável Belzebu. Bem-aventurados os que permanecem no caminho dos porcos. Ao lado teu, perseveramos. Resplandece a diáfana luz da verdade sem tempo (No caminho dos porcos, ano de 00 [00], p. 00).
Ergueu-se meio metro acima do chão, oculto pela mata crescida, e relinchou. Para o céu, aberto, de fulgores antigos, as estrelas. Escorço feito de sombras. Na distância. E tombou. Dorso partido, em pedaços, derruído. Madrugada quente. A iluminação débil, do poste único, na estrada vazia. Intersecção entre os planos. Relincho para dentro, de som nenhum. Obscuridade. Arrastou-se, arrastava-se, língua para fora, buscando sustentação, o entendimento. Conjunção de pouca sabedoria, desunião dos membros, corpo desajuntado. Trechos de si brotando da terra úmida. Não lembra quando veio o primeiro golpe. Não viu. Partiu-se. Abundância de líquidos. Sangue, choro, salivação. Espuma branca escorrendo pelo canto da boca. O universo é composto predominantemente de energia escura. A matéria ordinária consiste no agrupamento de substâncias que formam o cavalo e o sonho. O desespero nos olhos exorbitados, a consciência da transmutação, o retorno ao princípio. Aerólitos que vagueiam, corpo sólido do espaço exterior. Dissolvendo-se no interior das camadas da atmosfera terrestre. As galáxias se movimentam, interagem com a matéria escura. O restante é vácuo. Enigma. Seguiu-se o desmembramento. Errático, mecânico, sem cuidado. Repetitivo. Desprendimento da forma orgânica, ajustada pela evolução biológica. Primeiro as partes superiores, desaloja-se a cabeça da garganta, o longo pescoço, estruturação complexa, de sete vértebras na sustentação de muitos músculos. Então, as partes inferiores, braços e pernas, subdivisões anatômicas, porções desiguais. Gesto imprudente, indiferente. Odor de tabaco. Galáxias apresentam variações morfológicas de três tipos, as irregulares, as elípticas e as espiraladas. Lembra-se da torneira, biqueira aberta, pingando. Os latidos. Balde cheio, de sangue e água. A diluição do tempo, a equivalência entre gravidade e força inercial, a simetria dos elementos etéreos, integração, o movimento regular e contínuo. Linguagem humana, ruído indecifrável. Senão pela violência. O rosnado. O tempo é relativo, o espaço é indeterminado. O homem é mau. Sentiu cansaço, a contração de músculos perdidos, alhures. Arregalou os olhos, quase fechados, para alcançar a luz, o esclarecimento. Cânticos anfíbios. Moscas dançam no ar, perfazem coreografias imperfeitas. Nuvem de Oort, blocos de poeira, dos primeiros gases. O esquecimento. Os ganidos. Rasga-se o ventre. Lava-se as vísceras, distribui-se a carne. Mói-se os ossos. Adia-se a fome. O ser é probabilístico. Lavou as mãos, os braços, virou o balde, o líquido fluiu pelos sulcos da terra. Toda radiação eletromagnética apresenta dualidade. Juntou os pedaços. Satisfeito. Animais domesticados no princípio do Neolítico, de incontáveis idades. VY Canis Majoris, na constelação de Canis Major. Afastou os cães. Crianças brincam ao redor. Calou as crianças. Cem milhões de anos após a Grande Explosão, névoas de hidrogênio e hélio flutuavam no interior sem direção, por dentro de galáxias primordiais, universo primordial, fundindo-se, formando estrelas supermassivas. Formigas recortam os globos oculares, carregam a decomposição, por dentro, por fora. Na profundidade, os Pilares da Criação, afastando-se, despedindo-se, na desmesura. O sangue seco, ainda morno, coagulado. A caminhada, a sombra, as formas na sombra. O equídeo pasteja, livre, puro, sem marcas, no matagal sem dono, oculto pela noite. Madrugada quente. Fatigado. Velho. Velhíssimo. Macrobial. Estima-se que o espaço observável guarde quase cem bilhões de galáxias. Cada galáxia contém em seu núcleo uma singularidade supermassiva, ativa ou quiescente, e em média duzentos milhões de milhões de estrelas. No Caminho da Anta existem entre duzentos e quatrocentos bilhões de corpos luminescentes, deslocando-se pela esfera celeste. Catorze bilhões de anos, catorze aeons. A vida é mera eventualidade. Variação entrópica, impremeditável. A sua origem é desconhecida, estranha ao pensamento. Não lembra quando veio o primeiro golpe. Não viu. Partiu-se. E assim reduzido, submerso, transmudado, multiplicado, na interação dos superaglomerados com os superaglomerados, participo da expansão do universo. Ergo-me, enfim, para a eternidade.
* Thiago Costa. É historiador. Vencedor do primeiro Prêmio Pixé de Literatura (2019), na categoria Prosa, com o conto O tratado da esfera.
(Capa: René Magritte).