Lâmina afiada, crânio de cavalo e outros desastres humanos – “Quim” – Por Odair de Morais
09 de dezembro de 2020, cabeças de cavalos são encontradas em uma área alagada no Bairro CPA III, em Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. O local fica próximo a uma estação de tratamento de esgoto.
Uma varredura no local, realizada pela polícia, não trouxe a público nenhum vestígio do resto dos corpos dos cavalos. A suspeita é que os equinos foram mortos para produção de embutidos e carne seca para comercialização.
“Cemitério clandestino de cavalos”. É bizarro, absurdo e cruel. Vários crimes podem ser elencados. O principal: o assassinato desses animais.
Essa antologia virtual da Ruído Manifesto pensa esse caso inusitado e brutal, seja tratando diretamente do assunto, seja usando-o como pano de fundo para histórias tão cruas e incomuns.
O que há de inaceitável e surreal nesse fato é uma convocação à escrita, e a literatura está sempre alerta para dar vazão ao estranhamento, às indagações e à indignação que nos impulsionam ou assombram.
Bem-vindos à série de contos Lâmina afiada, crânio de cavalo e outros desastres humanos, com curadoria do nosso editor Wuldson Marcelo.
Para inaugurar a antologia, o escritor mato-grossense Odair de Morais apresenta o conto Quim.
***
Quim
Quim decidiu que ia abandonar de vez aquela vida de cachorro.
Sujo, largado sob a marquise das lojas do Centro, com a mão estendida para os que passavam com as sacolas cheias de presentes, aguentara todo tipo de humilhação.
Levantou-se e pôs-se a caminhar.
Quatro horas da tarde.
Difícil respirar assim, ele pensou, sob o sol de 40° usando máscara – ainda mais numa cidade quase desértica.
De noite, você tira a máscara e percebe que as bochechas estão como um seio enorme que ficou durante horas tostando em cima da laje.
Ele riu.
E os mendigos, por acaso, se preocupam com máscara? Uma ONG até tentou fazer com que usassem durante a pandemia.
Chegou, explicou como colocava e distribuiu centenas.
Pra quê?, eles se perguntavam.
Lavavam-se quando dava. Quando encontravam um registro com torneira moscando na calçada… e olhe lá!
Caso contrário, agiam que nem passarinho depois da chuva. Qualquer poça de rua ou recipiente que acumulasse água o bastante para molhar a palma da mão virava um lavabo.
Agora, pelo menos, vinha chovendo de vez em quando.
Ia pensando nisso enquanto caminhava.
Eh, Quim, ele murmurou imitando uma antiga professora do ginásio.
Viu os casarões demolidos na Ilha da Banana e se lembrou de quando dali foram enxotados pela polícia.
A cara balofa e oleosa do prefeito no cartaz dependurado no poste era um claro sinal de deboche desde a última eleição.
No Morro da Luz, recordou o quanto gostava de passar as noites esgueirando-se entre as árvores. Apelidava todo mundo que ali aparecia. Contava lorotas a rodo.
Tinha a imaginação muito fértil.
Se era fake ou não, quem se importava?
Oh, gordão tagarela, conta pra nóis. Por que cê saiu de casa mesmo?
Joaquim Antunes do Nascimento era o seu nome de batismo.
Conhecido como Quim desde criança, na rua – agora – era o Quim Maia.
Os caras tiravam a maior onda.
Conta aquela história, Quim, de quando tu foi puliça.
Jurava que tinha sido mesmo, há muitos anos.
Como cê foi polícia, cara, se não tem nem Ensino Médio?
Contava que na época, para ser PM, não se exigia escolaridade alguma, e, sequer era necessário prestar concurso público.
Cansou de ser gambé.
Na cabeça de Quim, os caras eram hienas.
Deixa de boa, dizia para si mesmo, tentando se tranquilizar.
Tiravam ele de mentiroso.
Vamos ver o que ele vai inventar hoje, comentavam, enquanto ele se aproximava.
É assim mesmo, ele falava, a vida tem seus mistérios.
Mistérios e revertérios, né, Quim?
Diz aí, Quim, que que cê manda?
Como cê veio parar na rua, Quim? Foi a droga, né?
Oh, Quim! Quim Maia, cola aí.
Deixa esses cuzão pagando de comédia e chega pra cá. Depressa.
Todo mundo queria trocar uma ideia com ele.
Que dificuldade pra mover essa perna, hein, gordão?!
Ah, vão se foder! Que cês querem?
Saca só, Papai Noel…
De camisetona vermelha, obeso e envelhecido, ele parecia mesmo um Noel mal-ajambrado. Só que negro.
Eh, Papai Noel, o que cê trouxe pra nóis?
O saco tá cheio. Por que não vem pegar?
E fez o gesto, movendo a cintura em direção ao outro, que se sentara no meio-fio.
Deu as costas em seguida, desdenhoso: Cês tão me zuando.
Volta aí, Quim. É sério!
Então fala, mano. Desembucha. Não tenho o dia inteiro disponível.
Tá trampando agora? Tem que bater ponto na firma, é?
Ei, onde cê vai?
Tô indo lá no viaduto dar um salve pra um parceiro.
Ainda ia ver se conseguia fazer uns trocos mais tarde em frente ao Tucanos.
Chama um Uber.
Vai se lascar!
Seguiu.
O natal se aproximava e ele não tinha outra motivação, a não ser voltar pra casa dos parentes.
As opções que a rua oferecia não lhe satisfaziam mais.
Vinha se sentindo triste à beça nos últimos dias, a ponto de querer se atirar mais uma vez na frente de um carro.
Seu humor vacilava em períodos de abstinência e ele estava decidido a nunca mais mexer com porcaria.
Catar alumínio pelas ruas e dormir na sarjeta? Não, obrigado.
Cansara!
Tentaria outra coisa… Qualquer coisa, até se arranjar.
Cuidou dos carros na avenida do CPA até as duas da manhã e conseguiu juntar mais uns trocados.
Comeu um baguncinha no trailer e, mais tarde, continuou a saga. A pé.
A cada quadra alcançada, como prêmio, dava uma beiçada no corote comprado numa birosca que insistia em permanecer aberta madrugada adentro.
Ao passar em frente a uma casa no bairro Morada do Ouro escutou um lambadão do tempo em que fora adolescente.
Lembrou-se das festas que rolavam na praça do bairro.
Sonolento. Boca seca.
Quis jogar uma água no rosto, mas, de tão bêbado que estava, tropeçou e acabou caindo sobre uma moita de capim numa região de mata que adentrara.
Dormiu.
Sonhou que estava numa fazenda.
Era agora um peão conduzindo a boiada pela várzea ao som do berrante, montado em seu alazão: Eh!, boi.
De repente, se tornava o caubói que acendia um cigarro importado e acenava durante o horário nobre na tela da tevê enquanto, num close, piscava pra câmera.
Um grupo indígena o fulminava subitamente e uma das flechas atravessava-lhe o crânio.
Despertou.
Atônito, pôs-se a apalpar os olhos.
Tinha a nítida impressão de que uma voz familiar o acordava.
Era sua mãe a lhe falar: Quim, você não tem nada. Anda sujo. Não trabalha. Toma vergonha na sua cara, meu filho!
Não acreditou quando se viu cercado por inúmeras cabeças de cavalos espalhadas à beira do córrego. Sem os corpos.
Reuniu suas últimas forças para sair do local o mais rápido possível.
A noite se esquivava enquanto os urubus faziam um banquete sob os primeiros raios de sol da manhã.
Evitou tropeçar sobre as vísceras que por ali se decompunham.
Caminhava com dificuldade, como se não tivesse abandonado por completo ainda o pesadelo.
Afastou-se.
Em poucos minutos, estava novamente na avenida que ele conhecia tão bem desde menino, quando vendia água no farol.
Se contasse o que tinha visto, ninguém acreditaria.
*Odair de Morais nasceu em Cuiabá, em 1982. Formou-se em Letras e em Jornalismo pela UFMT. É autor de Contos Comprimidos (Multifoco, 2016), Instante Pictórico (Carlini & Caniato, 2017) e Poesia não acaba nunca (no prelo).
(Capa: Horse and Train [1954] – Alex Colville).