Três poemas de Lauro Heinsenbauer
LAURO HEINSENBAUER (1983) Nasceu em São Paulo, capital. Interessou-se pela Literatura ainda no Ensino Médio. Além de acumular livros e desalentos, escreve para sempre se redescobrir e se reinventar. Tem textos em algumas revistas como: Alagunas, Subversa, Inutensílio e Mallarmargen. Publica no blog rhynocerontem.
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Neblinário
:. Sombras albinas sondam os ombros dos montes são os brancos silêncios de uma manhã ainda adormecida nos despistamos do real e de imediato nos afundamos numa catarata espasmódica redimida momentaneamente pelas tentativas de o sol em inúteis golpes de enxada abrir cissuras num céu de couraça gasosa as costas blindadas de oblívio volutas memórias neblina a dentro descendo sobre as copas das árvores pelos caules das ervagens deslizando melindrosamente pela medula assim se dissipava rumo ao ventre da terra e aos sonhos dos minérios as lembranças da névoa era a vivacidade deixada nos tijolos vermelhos das casas inacabadas era o beijo deixado por um fantasma no vidro da janela nas primeiras horas do dia eram os minúsculos óvulos de água pendendo dos verticilos das flores encontraremos meios de sanar essa febre diária esses pequenos episódios de fúria e calosidades emocionais quando percorrermos o mesmo caminho dos perfumes verdes e aveludados do boldo seremos denunciados pelo gesto amargo que é volver as entranhas de cada uma de nossas rotinas sempre os dias hão de vestir tecidos vários segundo o nosso humor sempre as horas tirarão de nossas bocas as palavras mais apropriadas conforme o grau do nosso desespero o sem-número de soluços incrustados no céu da boca que nos sufocavam os espaços em branco deixados pelos verbos da nossa impotência tudo isso esfacelado diante de um jogo de espelhos criado pelo tempo a era dos corcéis de bronze relinchando a ferrugem das nossas anatomias lugar nenhum que nem o gerúndio mais andarilho chega nem praga mais obstinada fecunda o disfarce da neblina dispersa metaforizada em rio não ido em página não virada a frase feita dessa calmaria talhada na última carne da noite durante o tempo de um murmúrio comungaremos a este instante
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Era o tempo
À J.M.
Dançavas pé ante pé no plano do infinito.
No tempo em que a primeira estrela surgida no universo
Fez vibrar um imenso círculo concêntrico de luz na escuridão.
Era o tempo do Verbo Primordial
Mas nada se sabe sobre o Sopro da Vida
Sabe-se da membrana esclerótica do olho de Deus
Diante do qual todos nós perambulamos .
Era em um tempo
Longe das coisas do homem
Que se escavasse um sonho longínquo
Chegaríamos à primeira linhagem de uma pedra
Mas a tua origem permaneceria insondável.
Minha memória exterioriza-se
Mas é varrida pelo vento
De cem mil páginas viradas.
Para alcançar-te num delírio
Segui pelo sentido oposto ao dos nomes
Todos que os homens inventaram
E cheguei até onde estamos nós
Como dois mistérios soltos no cotidiano
– cúmplices e esperançosos –
Como em tantas tardes quando observávamos
O sol , um impositio manuum”,
Acariciando flores artificiais.
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Ipês
Eu tenho um olhar que penetra as camadas cinzentas das grandes cidades e enxerga fenda por fenda o percurso entre o conciliábulo dos ferros e o conluio dos urros clausuras que abrigam o suor de tantos braçais as pequenas mortes de suas forças como baleias encalhadas na poeira suspendem em meio ao caótico movimento das capitais como que correntes e invernais de angústia e cansaço penduradas pelos outdoors as minhas crises de identidade com os dizeres “INDISPONÍVEL AQUI” e o meu número de telefone logo abaixo justificam um sem-número de fracassos e passos lassos quem já viu um trailer com uma propaganda mal feita debaixo da garoa conhece grande parte do modus operandi desses tipos de lugares e se comove e apura faz a prova dos nove e mesmo que os ponteiros me ceguem eu sigo eu sigo não sei como rastejo esfolando o fole pela Brigadeiro Luís Antonio avistando a Sé com o velho olhar da velha Esperança gasta invulgar como cachorros beges vadios os articulados puxados por demônios e manangers batedores de meta rangem de dentro de minhas tripas e outros infernos vicinais em cujos postes se recostam os estripadores de idílios era mais de meio-dia quando entrei num sebo do centro da cidade e sem saber rezar formigamentos nenhuns li num livro quase devorado pelas traças que os ipês florescem nas grandes cidades enquanto nós só sobrevivemos