Manifesto Periférico – Juliane Ataíde
Juliane Ataíde, Kaju é poeta desde sempre, olhar complexo e curioso. Raivosa querida essa poeta potiguar de 39 anos já lançou dois livros, phylochip – ou sobre a realidade (2018) e Avulsas 44 (2020). Ela é compositora e iniciou em 2021 a produção do seu primeiro álbum de músicas “vira lata de luxo”. Além de poeta, compositora, Kaju é cozinheira, professora de filosofia, DJ, educadora social e produtora cultural.
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Sua ansiedade
Não negue a você o básico!
Seu olho não vê o infinito que resta.
A aflição te invade, o presente some.
Fica só o laço no chão, na estrada,
E você nem vê.
*
A mãe brasileira
É
a lista de compras,
a analista,
a lista de tarefas,
as ervas.
Na hora do almoço,
é
escola,
depois
filmes,
banhos.
Tudo isso pro pai vir buscar!
Nunca chega na hora!
Fazer o que né?!
Pensar que eu não escolhi esse pai!
Só queria sair pra beber!
Somos
a lista de amigas,
seus antepassados,
amores guardados,
amém?!
Família?
eu, meus rezos, meus versos,
pai, mãe,
são tantas as histórias!
São tantas as listas de poesias,
de livros, de medos.
É sobre aquela velha obrigação,
aquela imensa guarnição,
eu, a vulnerável,
eu, a sozinha!
Grita dentro de mim
cada página disposta,
mais disposta que eu!
Cansada?!
Faz parte,
todes vives!
Amém!
Eu sou uma mulher brasileira,
que reza terço em 44,
Maria, me abençoa!
Também sou filha,
bota fé!?
*
Meio-dia
Penso
Não sei o que fazer da vida
Não quero fazer tudo, mas o nada é mail visto.
Viro
Queijo nutela neste sol de meio-dia,
Não demora muito,
Lá estou eu.
Escuto
Pedidos de ajuda para Angola, Moçambique, Haiti, e eu aqui.
Reflito
jajá a vida passa, dá meio dia de novo,
e eu aqui.
*
O amor não é vil
Ele flui como água e não para,
busca espaço no canto que resta
e nunca cessa.
O amor é límpido e imperfeito,
é água, fogo, ar, calma;
é vontade de fazer bem,
quietude inexplicável, implacável.
O amor não tem forma,
não é sobre sede, nem dor;
de onde vem não se sabe,
mas certamente de um lugar secretado.
O amor está aqui
na boca muda,
na boca que fala,
na boca que reclama,
isso é amor!
Ele é o pensamento que acende o meio das minhas pernas,
sem eira, nem beira,
nem teto tem.
*
O Prato e o Sangue
Quando eu vinha na rua com o prato cheio de sangue dava graças a Deus por estar viva! Adorava comer aquele sangue depois bem temperado e cozido como só Maínha fazia, e faz! Vocês já viram um boi morrendo? E boi descendo? Um porco de farda? Um fardo! Viram?
Não moça, jamais falaria mal do sangue não, da senhora eu já não sei. Deixa eu te dizer uma coisa bença, senta aí, me escute, pode ligar eu gravador. Vou te contar minha história, ou pouquinha parte dela, por agora é o que consigo lembrar.
É sobre sangue né? Trago aqui o diário de uma saudade que até hoje ainda não sei explicar como sangra no prato da menina.
Eu andava sozinha na rua, 6 anos, Bairro Nordeste, rua Jandira, Natal, nordeste brasileiro, sabe onde é? Maínha me escolheu para ser a compradora de frango dela, minha irmã, mesmo sendo mais velha não daria conta da cena.
O sol torrando, eu ainda na rua de calcinha e um prato fundo na mão e o dinheiro na outra. Se maínha colocasse vinagre no prato, ia ter galinha a cabidela!
Morei na casa de vovó Avani, mãe do meu pai, as vezes ela comprava galinha viva na porta, limpava ela uns dias, só milho e água para elas comerem e depois disso, matar! Batia na veia do pescoço, a faca amolada, o grito de morte, a lição de vida: olhe Juliane! Que isso é como a vida minha filha. Ou seja, a vida é faca e sangue o tempo todo. Um prato cheio de pranto, o paninho da menstruarão encharcado.
Tava sol ainda e eu ali sozinha na rua de calcinha indo buscar o sangue da senhora minha mãe, eu andava na rua toda feliz indo escolher o frango vivo na galeteria, ele seria a mistura do almoço e da janta também, canja ou com cuzcuz. O melhor frango do mundo mainha fazia e faz! Tome nota: Alho, cebola, tomate, cheiro verde, sal, pimenta do reino, pimentão, óleo e colorau. Não coloca água para ele ficar apertado, com grachinha, como meu coração depois que virei órfã de pai, com o coração no prato. A melhor memória do mundo até hoje o franguinho de dona Janete!
Tava sol e eu só, a rua tinha calcinhas e no meu pratinho tinha sangue, você me entende moça? Me sangraram igual a galinha. Ficou só o prato na mão. A senhora me entende? Minha mãe também sangrou. Você já viu um porco morrendo moça? Eu matei um, era ele ou eu, a senhora me entendeu agora? Mas eu trouxe o sangue para minha mãe e a gente comeu.