“Meio Mulher meio vaca”, um manifesto de Barbara Leite Matias
Barbara Leite Matias: “mulher, artista, nordestina, descendente dos povos Garius de Quitaíus (disse minha vó Albertina Maria de Jesus), CE, Brasil. Filha de Marinez, neta de Barbara e Albertina, tipo de sangue ‘o’.” Email: barbara.leitematias@gmail.com
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Meio Mulher meio vaca
Manifesto primeiro
O sangue não pode vazar, mas não dá pra ficar indo direto no banheiro atrapalhando o ensaio e nem dá pra ficar vendo sangue porque algumas pessoas ficam nervosas com a cor vermelha. Não fala vermelho, tá vermelho?
Pode falar que coloca o sangue nas plantinhas, por favor, quando não estiver sangrando. Não pode engravidar, mas é bonito ser mãe artista para criar crianças feministas quando convêm. Se abortar, não fala pra ninguém, viu!
Tem que passar em concurso, tá saindo três, ai pelo menos um concurso é seu, garotona!
Tem que finalizar a dissertação. Tem que passar no doutorado. Tem que publicar a dissertação e sua monografia precisa virar artigo de revista, muda o titulo, faz alguma coisa, mas publique.
Tem que manter o peso. Como você está magrinha. Oi, nossa como você está mais forte, se viciou na Pizza _______.
Tem que fazer yoga. Tem que fazer uma luta pra se defender na rua, em casa não precisa.
Tem que ter paciência com os machistas e com todos os homens que diplomaticamente/delicadamente te calam. Seu amigo gay não foi machista contigo, ele é gay né, e não estava num dia bom, compreende.
Tem que ser vegetariana. Tem que ser vegana. Tem que plantar uma horta. Tem que ler poesia, ops, todo mundo já leu esse livro? Tem que ler pra depois não ficar falando besteira.
Tem que ser fiel. Tem que ser cachorra quando convêm. Tem que ser alternativa nas horas que também convêm. Tem que ser estilosa. Tem que ser clássica pra ser respeitada não é toda hora que o arco- íris aparece. Tem que ver filmes de Artes. Tem que se vestir bem.
Tem que atuar bem; não pode gaguejar o texto, não pode esquecer o texto, não pode ficar nervosa em cena, não pode gritar em cena, não pode se emocionar em cena, não pode ser fria em cena, não pode ficar ansiosa em cena, não pode desobedecer ao diretor, não pode deixar de ensaiar por conta da cólica, pode ter bad desde que não atrapalhe o processo, não pode dirigir, atuar e produzir sozinha, que egoísmo mulher, não pode ser egoísta, pode gostar de gente mais não de toda gente.
Não pode só ficar falando de feminismo em cena. Pode falar da mulher, mas…
Não pode deixar de mandar o artigo para a revista, tem que ter bons contatos acadêmicos, não pode olhar de cara feia para o pessoal da coordenação.
Tem que ser amiga dos produtores, tem que saber se produzir.
Tem que ser diplomática e doce. A mistura perfeita.
Tem que conter a língua, as pernas e o decote, tem que ser agradável, a buceta tem que ser cheirosa e rosada, o cú não caga, nem peida, nem bufa, nem contrai e nem relaxa, evita falar cu, tá! Fala cu aqui, só aqui, aqui, o cu.
Não vale sentir fome, a fome é contida e a raiva também, não pode chorar, pode chorar às vezes mais sem escândalos, discipline suas emoções para desfilares lágrimas educadas.
Tem que ter um Lattes que late muito pra ser escutada usando saia, tem que falar três línguas e fazer bolo.
Tem que ser puta na cama, tem que conhecer um país do exterior, dois ou três, mas tem que fazer mochilão pelo menos no Brasil filha!
Tem que gostar da natureza, tem que ir para o barzinho toda sexta com os alternativos endinheirados e falar diplomaticamente o que – os – convém.
Tem que ter boas relações com o âmbito familiar, tem que separar as crises, tem que ter crises e justifica-las com o horoscopo assim evita exposição. Não pode se reclamar, pode reclamar contendo a emoção.
É MELHOR NÃO TER EMOÇÕES.
Não pode sonhar alto, mas tem que ter boas perspectivas, desde que não avance a ponte que lhe determinaram.
Não pode sair antes de a reunião finalizar, o peito também não pode vazar, mas pode chupar até gozar, tem que ter dois peitos, tem que T.E. R – P.E.I.T.O.
Tem que saber as normas da ABNT.
Tem que saber beber com os intelectuais e os artistas em circulação. Tem que ter dinheiro, tem que ter cartões de créditos e de saúde, só não precisa ficar falando que faz terapia, isso deixa no ar uma sensação de que você é… Você entende né. É Brasil,
Tem que conhecer os novos restaurantes da cidade e os antigos também. Tem que ver todas as séries cults, tem que ser amiga do ex, não pode ter recaída, pode deslizar quando convêm e sem tanto barulho, ok? O.K.
Tem que tocar um instrumento, tem que cantar afinada, pode até desafinar no domingo com todo mundo bêbado pra rir de você.
É bom ter um carro, uma conta poupança também! Uma casa com piscina, um apartamento com varanda também está valendo, tem que ter plantas, às vezes um gato, às vezes um cachorro, às vezes sem nada disso, mas… Tem que conhecer a história da arte, mas tem calma quando e onde for falar; Você se magoa relatando o contexto histórico sua bobinha, porque você não se identifica com a maquiagem da Cleópatra e tá tudo certo!
Não pode ter dúvida, mas pode usar a dúvida como bobeiras, e ninguém irá se assustar contigo. Pode fumar maconha, mas tem que ser discreta como suas tatuagens bem pensadas, digamos assim, pode tomar café, mas sem açúcar.
Não pode tomar suco com açúcar, não pode escutar funk, mas nas festas alternativas de vez em quando pode dançar, não pode jogar a real para o coleguinha, não pode também ficar calada, não pode mudar de ideia, não pode mudar de estilo, não pode mudar a cena, não pode mudar o jeito de pensar, não pode mudar a pesquisa acadêmica. Pode mudar tudo com o consentimento. Não pode, pode, mas e, mas… E.
Existem muitas amarras nas artes, nós mulheres artistas enfrentamos cotidianamente. Resistiremos.
Manifesto segundo: Vermelhidão.
Assassinada/cotidianamente/delicadamente/brutalmente calada ou morta pela sociedade da paz que se encontra no Crato, Fortaleza, Índia, Japão, África, Inglaterra, América Latina, no norte, sul, leste e oeste. No lar do piso importado e na casa sem teto. A roupa é branca, a alma é branca, o véu é branco, a lingerie é branca, a meia é branca, o assassinato é branco, o assassino também é branco, o sistema é branco, o silenciamento é branco. E enquanto isso o sangue escorre ladeira a baixo, perna a baixo, goela a baixo, silenciosamente. Morre Maria, Cidcleide, Dandara, Silvani, Barbara, Ana, Elisa, Eloá, Tereza, Joana, Dilma, Geanne Leticia, Marielle, Rosa, Albertina, Dilma. Enquanto morremos pintamos de vermelho sangue de escoamento todas as gaiolas que nos aprisionaram pelo motivo de sermos fêmeas.
Manifesto terceiro: Pelos que pregam no suor da pele
Eu sempre tenho uma peça pra estrear, uma peça que não sei como fazer ou falar. Eu sempre tenho uma peça pra estrear que me dar gás pra estrear as outras peças que tenho pra estrear.
Manifesto quarto: Escrita
Cavando, cavando pra encontrar a palavra. Cavar é à força da escrita. Tentativas são rainhas das salas de ensaio
Manifesto Quinto: o que é Arte se perguntaram as comadres.
Teatro para questionar teatro?
Que pira.
O que é?
Segredo que não sei quem souber me diga…
Arte para questionar arte?
Arte.
Não existe o que é e sim o que não é. O que não é? Sabemos, falamos poucos, às vezes carcaça ajudam a falar.
Arta.
Quem? Legitima a ação? Quais os critérios? Quem diz e de onde vem?
Europa não Arte.
Arte somos nós, a terra.
Europa? Essa palavra nos engole.
Se um dia eu descobrir o que é arte não vou contar pra ninguém.
Minha vizinha escutou e disse, é macumba.
Perguntei: A senhora já fez? Já viu?
Respondeu: Não
Também não, completei.
Descobrir a arte é a morte.
Manifesto sexto:
Arte arde
Sétimo Manifesto: Palavra SUADA de sala de ensaio
Eu gosto da palavra que gruda e dilata pra fora através das veias, dos poros, do sangue e do suor. Eu gosto da palavra que grita a partir dos incômodos de quem sente porque tem muitas que sentem também, mas, não podem ainda soltar. NENHUMA PALAVRA É MALCRIADA PORQUE QUER, É CRIAÇÃO CHEIA DE MEMORIA.
Eu gosto por meio das palavras e em nome delas incomodar as bundas que estão acomodadas nas poltronas confortáveis.
Manifesto TALVEZ inicial: A performance carcaça é uma corpa meio vaca, meio mulher, sem gritos, grita os emaranhados das tantas mulheres artistas. As que fazem, devoram, comem e estão sendo art/eira.
Arteira vem de artA.
Mulheres nas artes são mulheres do mesmo jeito.
Antes de qualquer coisa mulher.
Carregam suas corpas como toda mana.
Mulheres nas artes pisam firmes como as vacas e querem voar como as carcarás.
Mulheres menstruadas com seus pinceis misturados às tintas. Avermelhadas.
Ensaio complexados por pelos e suor.
Corpas criativas às vezes professoras, se pesquisando. Despesquisando.
Criando enquanto cria as crias.
MANIFESTO oitavo, aquilo que o mundo esfrega na cara.
Uma artista com fome na vereda desalinhada.
Nona Manifesta Carcaça,
Mulher NÃO tem fim, disse minha vó quando eu tinha seis anos, disse sem dizer, depois de engolir alguns murros com cheiro de cachaça do corpo de quem ela cuidou até tornar-se carcaça.
CARCAÇA é um manifesto performático sobre ser mulher artista.
As artes raivosas enfurecidas não perguntaram o que era Picasso, que vem de pica.
Arte da Europa é uma terra que não aduba as plantas daqui.
Segredo que não sei quem souber me diga.
Arte para questionar Arte enquanto minha vizinha apanha do marido? Obrigada, ave Maria, sou mais ser anjo que essa vida.
Não existe o que é e sim o que não é, falamos pouco, mesmo as linguarudas, são vozes encarcaçada.
Não diga por ai que sou forte, forte são as pregas do meu cú porque não podem dizer o que disse.
Se um dia eu descobrir o que é arte não vou contar pra ninguém. Vou ser prega de cú.