Memória de Toni — vítima estrangeira do racismo brasileiro (Documentário)
Por Rodivaldo Ribeiro
Toni Bernardo da Silva veio de Guiné-Bissau para Cuiabá por um convênio com a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Matriculado no curso de Economia de uma instituição brasileira, viu as perspectivas de um futuro glorioso abrirem-se como possibilidades reais do alto de seus 27 anos como um raio de luz concreta a opor-se à fímbria do horizonte, e ofuscar quaisquer outras visões.
A partir daqui, ele conquistaria um mundo seu, aprenderia como fazer, repassaria a seus irmãos em África Ocidental. Só não contava, nem ele nem sua família, com a dura realidade enfrentada pelos de sua cor no Brasil que tanto aprendeu a amar, à distância de um oceano.
Aqui, falsamente inserido no cotidiano de um tal Centro Geodésico da América Latina, passou a sentir as dificuldades de adaptar-se à cultura de invisibilidade reservada também concretamente aos que com ele pareciam no Estado colonizado pelos bandeirantes paulistas no século 18 e depois recolonizado — nos anos 1960/70, por egressos do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, que aqui chegavam com farto apoio financeiro, e terras, muitas terras, do Governo Federal da época.
Esses são hoje donos de campos de soja e milho equivalentes às áreas de vários países europeus, seus antepassados diretos, como bem sabem e inscreveram em livros e documentos as mesmas academias de saber, inclusive — e muito — aquela em que Toni sonhava estudar e ser verdadeiramente integrado.
Suas decepções em ver ruir a concepção bem construída ao resto do mundo, de um lugar de “integração racial”, tiveram efeitos ainda mais nefastos sobre ele do que sobre a massa de pretos que ali se graduou, suportou a pressão psicológica cotidiana do duvidar constante de suas habilidades enquanto ser humano, seguiu no mestrado e, se sobreviver, morrer e renascer num doutorado. (Aos que ainda não fizeram cursos universitários, infelizmente, não estou a exagerar nem muito menos sendo poético. São palavras reais, frias, lógicas).
Pressentindo a tragédia que precede o fim de todo sonho, triste, decepcionado, sobrevivendo em um não-lugar, encontrou conforto no crack; buscava fugir da vida apartada da vida que jamais existira além dos sonhos. Preto, sonhador e decepcionado? Inimigo público número 1 instantâneo. E sem nem ao menos saber.
À busca (e precisando) de uma redenção que nunca veio — temos na UFMT uma das melhores Faculdades de Medicina do país, não custa lembrar — tomou a decisão que seria a última de seu breve permanecer enquanto carne: saiu às ruas do Bairro Boa Esperança, onde se localiza a maioria das repúblicas de estudantes do campus da capital, inclusive a dos africanos de vários países, para conseguir dinheiro, na noite do dia 22 de setembro de 2011.
Acabou indo parar na porta da Pizzaria Rola Papo, a duas quadras da Faculdade de Administração, Economia e Ciências Contábeis, historicamente frequentada por estudantes da instituição e em cujo direito de estar ele acreditou ter conquistado. Pensava em ali encontrar gente conhecida, abrigo, quem sabe comida, talvez algum dinheiro, bebida ou um simples “e aí, cara, cê tá firmão?”.
Qualquer noção de casa ou comunidade africana que fosse, afinal, ele conquistara o Brasil, a terra prometida da “união das raças, a África que deu certo”.
Pedira aos amigos e conseguira, mas este acabou rápido como sempre acabam a fumaça e a ilusão das pedras em correnteza contínua. Transmutado em uma delas, resignou-se a parar e deixar a vaga nele bater. Uso e costume de sua terra-mãe, afinal de contas, nada além do cotidiano a enfrentar. Mas ele não contava que se aqui o que corre ainda é água, grande parte do fluído não é límpido nem transparente. É feito de sangue. E tem braços e pernas poderosos. Imensos e multiplicáveis.
Todos prontos a atravessá-lo. E o atravessaram. Conforme o texto do jornalista e colega Dhiego Maia (hoje na Folha de São Paulo), para o G1MT por esse tempo:
“Um estudante africano que cursava economia na Universidade Federal de Mato Grosso morreu após ser espancado na noite desta quinta-feira (22) em uma pizzaria localizada no bairro Boa Esperança, em Cuiabá. Segundo a Polícia Civil, dois policiais militares, ambos de 24 anos, e mais um empresário que é filho de um delegado aposentado, de 27 anos, são suspeitos de espancar o universitário até a morte.
Ao G1, a Polícia Civil informou que a vítima identificada como Toni Bernardo da Silva chegou ao estabelecimento por volta das 23h desta quinta-feira. No local, ele começou a pedir dinheiro aos frequentadores da pizzaria. Em uma das mesas, o universitário esbarrou em uma mulher. O namorado dela, o empresário de 27 anos, e os dois PMs que estavam à paisana no local, retiraram à força o universitário do estabelecimento e começaram a agredi-lo com socos e pontapés”.
Uma moradora vizinha, testemunha ocular, tentou apartar a briga. Não conseguiu e foi impedida de se aproximar, como todos que tentaram. “Não houve tempo para ninguém prestar socorro à vítima, que acabou morrendo no local.”
Os suspeitos responderam por seus atos na justiça. Em matéria para o Diário de Cuiabá, reproduzida no portal Uol, outra colega e amiga, Keka Werneck, resumiu, em 2014, o resultado do julgamento:
“A Justiça de Mato Grosso absolveu os policiais militares Weslley Fagundes e Higor Montenegro, envolvidos no assassinato do estudante africano Toni Bernardo da Silva, de 27 anos, natural da Guiné-Bissau. Ele foi torturado até a morte no dia 22 de setembro de 2011, na pizzaria Rola Papo, em Cuiabá, capital do Estado. O empresário Sérgio Marcelo Silva da Costa foi o único responsabilizado pela morte e foi condenado a dois anos e oito meses de reclusão, em regime aberto. Os três participaram do espancamento, que repercutiu internacionalmente”.
E também, o veredito, além da conclusão e das palavras da juíza responsável pelo caso:
Na sentença, a juíza Marcemila Mello Reis, da Terceira Vara Criminal da Comarca de Cuiabá, assegura que, no episódio, Toni estava extremamente alterado e seu comportamento causou a trágédia. “A vítima foi o agente provocador dos fatos, e seu comportamento foi decisivo para o desenrolar dos acontecimentos”, escreveu a magistrada.
Veja o documentário no meio do texto. Boa semana, boa luta!
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Quase nove anos depois da tragédia, o Coletivo Corte Seco finalizou o documentário Memória de Toni, para trazer a lembrança desse caso no momento em que o mundo protesta contra o racismo e vários movimentos sociais reivindicam justiça para Toni, que viveu como africano, mas morreu como brasileiro.
Uma sinfonia escatológica de destruição, morte e miséria estruturada há cinco séculos, em São Jorge da Mina, Gana — em seu último ciclo —, mas que, explicita o documentário, segue forte, sem dar sinais mínimos de arrefecimento.
O trabalho foi desenvolvido do roteiro à edição final pelo Corte Seco. Na definição deste grupo de amigos de décadas, “um coletivo audiovisual imaginário que produz vídeos sobre questões sociais comunitárias, cultura popular, sindicais e temáticas afins”. O que eu sei é que eles não sairão mais daqui. Só se quiserem.