Meu amigo Rodivaldo – Uma crônica de Wuldson Marcelo
Meu amigo Rodivaldo
Penso no dia em que tomo conhecimento de que o presidente da República recebeu no Palácio do Planalto Beatrix von Storch, a vice-líder do partido nacionalista-conservador Alternativa para a Alemanha (AfD):
“Se encontrasse o Rodi no Cavernas pra beber aquela gelada, certamente esse seria um assunto”.
Imediatamente, lembro-me que estamos vivendo em uma pandemia, que já ceifou a vida de mais de 553 mil brasileiros (a pandemia e o negacionismo do [des]presidente Jair Messias Bolsonaro), que o Cavernas está fechado e assim continuará até a transmissão da Covid-19 estar controlada e que o Rodi já não está entre nós, desde 30 de julho de 2020. Um ano. E no novo normal (que novo? que normal?) a tristeza, o instinto de sobrevivência, o medo, a esperança, a melancolia e o alívio digladiam-se dia a dia pela vitória. A saúde mental indo para o espaço e as urgências da vida implorando por equilíbrio.
E a Cinemateca pegou fogo, mais um crime deste desgoverno. O Rodivaldo há tempos denunciou o projeto político de depredação dos bens culturais e históricos do país, a supressão de direitos de trabalhadores, o aumento das múltiplas violências sofridas por indígenas, mulheres e negros, do sucateamento e amordaçamento de nossas instituições, do extermínio de nossa fauna e flora, do protofascismo instalado na mais altas esferas de poder. O Brasil não realizou de fato o abolicionismo. O Brasil inventou uma anistia que permitiu assassinos e torturadores a andarem livremente e sentirem saudade do AI-5.
Tudo isso o Rodivaldo já comentava, esmiuçava e escancarava. Ao mesmo tempo em que falava da Ordem Skull and Bones, emendava Ulisses de James Joyce, daí trazia para conversa os aviões da Segunda Grande Guerra Mundial, os erros cometidos pelo Partido dos Trabalhadores, Bar Mitzvá e a literatura de Maria Carolina de Jesus. Argúcia intelectual, inquietação e a consciência de que uma pessoa negra precisa ser duas ou três vezes mais conhecedor de um assunto do que um branco para ser minimamente escutado faziam do Rodi praticamente uma enciclopédia humana. O cara era foda! E generoso, na medida em que debater é partilhar conhecimento. Porém, não gostava de “perder” qualquer altercação proveniente do campo das ideias e da defesa de sua visão de mundo. Não que ele fosse intolerante ou irascível, mas às vezes conseguir direito à replica era uma missão quase impossível.
Comecei esse texto imaginando o que escrever. Comecei e nem sei bem que rumo tomou. O que sei é que sinto falta de dividir uma cerveja com o Rodi, de discutir planos para a Ruído Manifesto, de lembrá-lo que o Palmeiras não tem Mundial e de ter por perto um ser humano faminto por justiça social e por um mundo mais igualitário, com oportunidades para todas, todes e todos, da contundência de quem sabe que não se deve afinar diante de fascistas, racistas e daqueles que têm políticos de estimação e estão com a visão turva.
Enquanto penso como terminar essa crônica ou relato ou mera exposição de saudade, ouço Raul Seixas (Eu é que não me sento/ No trono de um apartamento/ Com a boca escancarada cheia de dentes/ Esperando a morte chegar…) e Emicida (Sou eu mirando e matando a Klu/ Só quem driblou a morte pela Norte saca/ Que nunca foi sorte, sempre foi Exu), recordando-me de uma fala do meu psicólogo, na época da depressão e dos antidepressivos, do peso do fracasso, das horas intermináveis:
“Você é uma pessoa muito bem-sucedida”.
No dia, um misto de incompreensão e indignação me tomou. Mas depois da coragem, do “Se tiver medo, vai com medo mesmo”, entendo, pois ser bem-sucedido é encontrar pessoas como o Rodivaldo e, além da amizade, ter a confiança dele para participar e agora para tocar um projeto tão sonhado, gestado e lançado ao mundo por ele, que é a Ruído Manifesto. Manter vivo um legado é um desafio ingrato e gratificante, um dever e manifestação de amor.
Vou ler novamente Essa Armadilha, o Corpo. Vontade de incendiar o mundo. Ou de aquilombar de vez, já que essa panela de pressão vai explodir. Se liga no que o Rodi escreveu: Terminar o processo de abolição: um manifesto de Rodivaldo Ribeiro.
Saudade do meu avô, dos outros oito parentes que minha família perdeu na pandemia, das amigas e amigos que faleceram neste período de um ano e meio, seja de Covid-19 ou não. Não há novo normal! Só um mundo mais triste, mais desigual e mais cruel. Que me perdoem os otimistas (já que não se pode chamar de positividade tóxica a negação de emoções consideradas negativas). Não está fácil pra ninguém! Não temos tempo para ciranda e nem para considerar que silenciar o sofrimento ou ignorar as dores alheia faz do mundo um lugar melhor. Algumas vezes o Rodi me telefonou pra conversar sobre problemas… Bom, mas com ele sempre tinha relação com o macro, e possuía um domínio assustador sobre como os problemas estruturais afetam a vida pessoal. Então lá ia ele conectar assuntos e levar o desabafo para um rumo completamente diferente.
Termino aqui, sem um desfecho, com a quase certeza que este texto é uma crônica, uma saudade que diz o quanto seguir adiante é uma espécie de homenagem. Como era incrível tomar aquela cerveja gelada no Cavernas, pensar um mundo mais justo e uma literatura mais democrática contigo, camarada!
Vem aí o livro da Antologia I Prêmio Rodivaldo Ribeiro de Literatura. Valeu, irmão! Chega de digressões. Obrigado, meu amigo Rodi!